Tropas do Exército alemão invadem o território polonês em 6 de setembro de 1939 . AFP/JC
J
O século XX se caracterizou por um período histórico em que as fronteiras entre as nações se expandiram, senão territorialmente, por meio de canais de comunicação e influência que transformaram o mundo por completo. Os efeitos de uma decisão política, de um conflito armado, de uma medida econômica, deixaram de ficar restritos aos limites territoriais dos países.
Estando interligadas, com ações locais refletindo em todo o globo, as nações se viram diante de um novo sistema de relações, fossem elas estratégicas ou econômicas. Com particularidades próprias, essas relações exigiam regramentos adequados, que fossem além e extrapolassem as normas específicas de cada país.
Assim, tornou-se premente a criação e consolidação de normas supranacionais, que dessem conta do novo modelo de intercâmbios. Desta forma, o Direito Internacional ganhava em importância e se estabelecia como uma resposta a uma necessidade.
Ainda que tenham se desenvolvido principalmente no último século, as primeiras normativas tratando de relações entre territórios datam de muito antes do nascimento de Jesus Cristo. O primeiro tratado bilateral conhecido foi firmado entre o rei dos hititas, Hattusil III, e o faraó egípcio da XIX dinastia, Ramsés II, por volta de 1280 e 1272 a.C., que pôs fim à guerra nas terras sírias.
Existente de forma precária e não sistematizada desde a transição da Idade Média (476-1453) para a Idade Moderna (1453-1789), criando consensos nas relações entre cidades e vilarejos próximos, o Direito Internacional evoluiu junto com as transformações que ocorriam nas sociedades. As assinaturas dos dois Tratados da Westfália em 1648, que deram fim à Guerra dos Trinta Anos na Europa, marcaram o início do que estudiosos convencionaram chamar de Direito Internacional Público. O segundo grande marco foi o Congresso de Viena, em 1815, que deu fim às guerras napoleônicas.
A primeira grande guerra e o fracasso da Liga das Nações
Foi no século passado, porém, que o regramento supranacional deu um salto. O crescimento das tensões políticas, com uma corrida armamentista sem precedentes na Europa, o acirramento de rivalidades econômicas, a crise do imperialismo e a eclosão dos nacionalismos foram a pólvora que acendeu o estopim do primeiro grande conflito armado do século. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), embora centralizada em território europeu, envolveu as principais potências mundiais da época. O embate colocou de um lado a Tríplice Entente, composta por Reino Unido, França e Império Russo, e de outro a Tríplice Aliança, formada por Alemanha, Império Austro-Húngaro e Itália. Em meio a isso tudo, em outubro de 1917, os bolcheviques tomavam o poder na Rússia, derrubavam o czar e davam início ao primeiro regime socialista da história. A Europa fervia.
Com um saldo de cerca de 11 milhões de pessoas mortas, o Velho Continente estava destruído e fragmentado em 1919. Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos, que tiveram papel secundário na guerra, se tornavam protagonistas no cenário internacional. O Tratado de Versalhes, que definiu as punições aos perdedores, também criou a Sociedade das Nações.
A Liga das Nações, como se tornou conhecida, foi a primeira organização a reunir países com o objetivo de resolver impasses sem a necessidade do uso da força. O órgão era baseado nos Quatorze Pontos idealizados pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson para que a paz fosse alcançada após o fim da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, as causas do primeiro conflito, como o imperialismo e o colonialismo, eram pouco abordadas.
Assim, com o fim da guerra, o poder foi redistribuído entre os vencedores. Como era de se esperar, não demorou muito para que os países em desvantagem decidissem reagir. O Japão passou a ocupar territórios chineses; a Itália avançou sobre o Norte da África, e a Alemanha deu início ao discurso revanchista promovido por Adolf Hitler.
Para o professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) Júlio da Silveira Moreira, o fracasso da Liga das Nações se deveu ao nacionalismo e separatismo cultuados pelos vitoriosos. Curiosamente, os EUA não faziam parte da organização, pois o congresso norte-americano não assinou o Tratado de Versalhes, fato que impediu que os EUA pudessem integrar a Liga. Sendo assim, com a ausência de um membro neutro para controlar e impedir excessos, a entidade ficou sob o comando dos países vitoriosos e prejudicou os derrotados, dando mais combustível para o conflito que ocorreria anos depois.
Mesmo objetivando cessar os confrontos armados, a Liga das Nações falhou em manter a guerra como uma possibilidade legal de se resolver impasses. De acordo com Eveline Brigido, professora da ESPM-Sul, o órgão preconizava que os conflitos fossem resolvidos diplomaticamente. Caso não houvesse êxito, dever-se-ia recorrer à Liga das Nações e, se, ainda assim, um acordo não fosse alcançado, o país poderia recorrer à guerra como último recurso.
Terrorismo: o inimigo invisível
Mais de 55 anos depois da criação da ONU, a impressão que se tinha no início do século XXI era de que o Direito Internacional estava consolidado e cobria, assim, todas as áreas que necessitavam de sua tutela. O choque de dois aviões contra as torres do World Trade Center, em Nova Iorque, em 2001, porém, pegou o mundo de surpresa. Surgia, de repente, um inimigo escondido, à espreita, quase impossível de ser detectado: o terrorismo.
A confiança de que os Estados Unidos figuravam como a maior potência mundial foi abalada naquela manhã de 11 de setembro. O ataque, que vitimou milhares de civis, balançou as estruturas das relações internacionais e, consequentemente, do Direito Internacional.
Embora o conceito de terrorismo necessite ser definido com maior precisão, é inegável que o atentado deu visibilidade à questão. O então presidente norte-americano, George W. Bush, modificou o conceito clássico de legítima defesa do Direito Internacional para a lei de legítima defesa preventiva, que origina novas estratégias de segurança nacional. "Tudo se baseia na ideia de que existe um inimigo abstrato. Mas o que é um terrorista?", indaga Júlio da Silva Moreira. As legislações supranacionais falham ao tentar definir o termo. Para as grandes potências, essa brecha é útil, pois permite atribuir, a qualquer pessoa que ameace o país, o título de terrorista.
A ideia de que os EUA precisam exercer pró-atividade para evitar o surgimento de células terroristas passa por cima dos conceitos do Direito Internacional. A caça que resultou na morte de Osama Bin Laden, em 2011, é um exemplo da condução autoritária de Washington. "Seguindo a soberania dos países, Bin Laden deveria ter sido preso pelas Forças Armadas do Paquistão, onde estava escondido. O que ocorreu, na prática, foi uma invasão de território justificada pela necessidade de capturar o terrorista", diz Moreira.
O pesquisador considera que as consequências dos combates preventivos são muito piores do que o risco que a ameaça realmente representa. "É preciso definir o que é um ato terrorista. Se depender da definição, os EUA também praticam essa violência. O combate ao terrorismo que ganhou força em 2001 é supervalorizado para atender a determinados interesses."
A nova ordem global e o surgimento da ONU
QUARTA SESSÃO PLENÁRIA DAS NAÇÕES UNIDAS, EM 28 DE ABRIL DE 1945. FOTO UN PHOTO/LUNDQUIST/DIVULGAÇÃO/JC
Outubro de 1945 ficou marcado como o grande ponto de virada para o Direito Internacional. Ali nascia a Organização das Nações Unidas (ONU) e, junto com ela, toda a base normativa que rege até hoje as relações entre os países. O surgimento da ONU está intrinsicamente ligado com o conflito que a antecedeu.
"A Segunda Guerra é um marco tanto para as Relações Internacionais quanto para o Direito Internacional. Existiam normativas e tratados antes, mas ela muda a ordem mundial. Temos uma nova ordem desenhada principalmente por um Direito Internacional extremamente abrangente", afirma Eveline Brigido.
Foi somente depois da Segunda Guerra que os conflitos armados se tornaram ilegais, com o uso da força sendo permitido em duas situações: ou em legítima defesa ou por meio de autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não se resolvendo consensualmente por via diplomática, uma disputa deve ser levada ao Conselho. "Também poderia ser levada a uma corte internacional, mas isso não acontece. Quando falamos em guerra, não falamos em meios jurídicos", diz a professora da ESPM-Sul.
Discussões no meio acadêmico ainda abordam os objetivos reais das Nações Unidas. Para Moreira, o papel da ONU é identificar quando um ataque militar é injusto. "Uma leitura romântica da Carta dá a impressão de que o objetivo era acabar com as guerras. Mas, na verdade, a organização cria normas para regulamentar o uso dos conflitos armados", enfatiza. Nessa abordagem, são retomados conceitos do Direito Romano de guerra justa e injusta. A injusta é aquele ataque sem fundamento, de anexação de territórios, para humilhar o país vizinho. A justa, portanto, é aquela em resposta ao ataque infundado. Ela origina o conceito de legítima defesa.
Eveline, por sua vez, acredita que as primeiras palavras do preâmbulo da Carta da ONU dão indícios da finalidade da organização. O texto começa dizendo o seguinte: "Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade ". Para a pesquisadora, a aliança entre os cinco membros fixos do Conselho de Segurança se deu para que não ocorresse guerra entre eles. "A ideia central é evitar uma terceira guerra mundial, não os pequenos conflitos. A ONU atua neles, mas de acordo com os interesses dos membros permanentes", destaca.
Quando fala em interesses dos membros permanentes do Conselho (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido), Eveline se refere a não intervenção em casos de conflitos localizados, como os que ocorrem na África, ou entre Israel e Palestina, por exemplo. "Se a Carta da ONU fosse aplicada sem esse jogo de interesses, talvez o Direito Internacional tivesse a possibilidade de evitar guerras. Entretanto, o Direito Internacional é casado com a política internacional."
O fracasso das Nações Unidas em impedir a ocorrência de conflitos pode ser explicado por diversos motivos. Para Eveline, porém, a razão é clara: não há interesse na paz. O último grande período de tempo em que se percebeu uma relativa paz mundial se deu durante os 100 anos que precederam a Primeira Guerra, período conhecido como Concerto Europeu, no qual o equilíbrio de poder na Europa resultou na inexistência de guerras.
A estudiosa lembra uma frase do filósofo e sociólogo francês Raymond Aron, autor do clássico "Paz e Guerra entre as Nações", proferida durante o período da Guerra Fria. "O Aron disse o seguinte: 'paz impossível, guerra improvável'. No período da Guerra Fria era perfeito, e ainda cabe hoje. Guerra total é improvável, mas paz total é impossível. Muitos lucram com as guerras, como as indústrias armamentícia e farmacêutica. A desgraça de uns acaba sendo a alegria de outros."
Soberania das nações limita efetividade das normas internacionais
Juliano Tatsch
Ainda que em permanente avanço, com o acréscimo de normativas e maior abrangência de áreas de atuação, o Direito Internacional se vê de mãos amarradas quando a soberania dos países impede a efetividade das normas supranacionais. Mesmo que tratem de questões indiscutíveis, como genocídio, por exemplo, nenhum tratado pode ser imposto a um país. Ou seja, as nações escolhem se ratificam ou não as normas internacionais. Sendo assim, sempre que as regras ditadas pelo Direito Internacional (DI) vão de encontro aos interesses de um governo ou país, sejam eles econômicos ou políticos, a execução dessas leis fica restrita.
Para o professor de Direito Internacional e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) João Grandino Rodas, a influência dos interesses políticos na esfera do DI é inegável. O acadêmico salienta que, na esteira do pós-guerra, um turbilhão de transformações no cenário global aconteceu em um período curto de tempo. Ocorreu a descolonização de territórios africanos e asiáticos, com o consequente surgimento de diversas novas nações independentes, surgiu um modelo de organização regional de integração econômica (Mercado Comum Europeu), as organizações internacionais privadas ganharam importância e os tribunais internacionais, de alcance universal ou regional, além daqueles com objetivos especializados, se multiplicaram.
Dentro desse contexto de grande transformação, a regulação por meio do Direito Internacional se viu obrigada a se atualizar e se adaptar. "Desde a década de 1980, acentuaram-se a erosão da soberania estatal, o aumento dos tratados multilaterais, a criação de tribunais internacionais, o aumento da utilização da jurisdição internacional, o crescente uso da mediação e arbitragem, a valorização do direito humanitário e o uso do poder estatutário pelo Conselho de Segurança da ONU", diz Rodas. Para ele, ainda que deficiente em sua aplicação, a jurisdição internacional cumpre o seu papel como balizadora das relações entre os países. "Como estaria o mundo moderno sem todos os mecanismos da diplomacia e do Direito Internacional atualmente à disposição e em exercício?", questiona.
Rodas destaca que, mesmo consolidado, tendo a ONU como guardiã maior, e com detalhada abrangência, o DI carece de força prática para impedir a ocorrência de conflitos armados. "Os Estados, dotados de forte autoridade interna, de direito obrigatório e de mecanismos de efetividade muito maiores do que o Direito Internacional, não conseguem diminuir a violência nos territórios. Quando se julga a ONU, geralmente são percebidos mais os erros do que os acertos, que são muitos. Os aspectos positivos ficam de lado, como os benefícios derivados dos trabalhos da Unesco, da FAO, do Banco Mundial, entre outros."
Diante disso, para o pesquisador, não se pode dizer que o DI fracassou no objetivo de frear iniciativas de violência. "Nunca foram usados mecanismos diplomáticos e jurídicos para evitar ou diminuir tensões internacionais e para reverter quadros de beligerância instalada", enfatiza Rodas, salientando que nenhum artifício, por si só e sozinho, conseguirá impedir que nações e povos façam uso da força para resolver seus problemas internos e externos. "A paz e o bem-estar internacional devem ser fruto de permanente vigilância. O trabalho coordenado entre a diplomacia bilateral e multilateral, os tribunais internacionais e nacionais e as ONGs é indispensável."
FONTE:
0 comentários:
Postar um comentário
Faça seu comentário aqui ou deixe sua opinião.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.