Terra traz perfil exclusivo de David Miranda, namorado do repórter Glenn Greenwald, que revelou espionagem dos EUA no Brasil e em outros países
Aperto de mão, troca de e-mails e cartões, e o entrevistado se despede. “Coloca na semana que vem no ar que você vai ter um belo gancho, valeu”. David Miranda é o namorado do jornalista americano Glenn Greenwald, que, após receber arquivos ultrassecretos do hoje inimigo número um dos EUA, e ex-analista de inteligência da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, Edward Snowden, vem revelando casos de espionagem contra os brasileiros, a presidente Dilma Rousseff e, agora, a maior empresa do País, a Petrobras. Ele sabia o dia da publicação da denúncia, no último domingo, não apenas por ser o companheiro de Glenn, mas porque foi ele quem negociou e escolheu o programa de exibição dos últimos furos de reportagem que brotam todo o final de semana, na medida em que as informações criptografadas vão sendo estudadas.
A história do casal é conhecida: os dois estão juntos há nove anos, se conheceram quando David quase acertou a bola do futevôlei na caipirinha do gringo na altura da rua Farme de Amoedo, reduto dos homossexuais na praia de Ipanema, e desde então, como explica David em entrevista ao Terra, "existe a minha vida antes do Glenn e depois do Glenn". Eles moram juntos na zona sul da cidade, em uma casa confortável, com dez cachorros.
O que nem todo mundo sabe é a importância desse carioca - nascido na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, que não conheceu o pai e perdeu a mãe aos 5 anos - nos trabalhos que o jornalista do periódico britânico The Guardian vem desenvolvendo para trazer à tona todos os casos que Snowden possa ter passado a Glenn. Em junho passado, em Hong Kong, ele deixou documentos nas mãos do jornalista antes de passar quase 40 dias na área internacional de um aeroporto na Rússia e ganhar asilo temporário do presidente russo, Vladimir Putin.
Existe a minha vida antes do Glenn e depois do Glenn
David Mirandacompanheiro de Glenn Greenwald
David hoje é uma espécie de empresário do jornalista, que largou o Direito para realizar o sonho de ser repórter e escritor, mora no Brasil para viver com o companheiro e acabou encontrando no Rio a liberdade para trabalhar no caso, coisa que não teria se vivesse nos Estados Unidos de Barack Obama.
"Eu administro a vida dele fazendo as estratégias de marketing e de mídia. Por exemplo: eu trabalho com os determinados assuntos que devem ser anunciados e requerem uma grande exposição. Eu escolho qual a mídia para isso, que, hoje, sem sombra de dúvida é oFantástico (da TV Globo)", explicou Miranda, que define também parcerias com os veículos impressos para revelar os casos.
No caso, os dois periódicos de maior circulação no País: O Globo, que foi o primeiro diário na imprensa a mirar o alvo da espionagem para o Brasil, e a Folha de S. Paulo, com quem também negocia. "Eu que fecho qual veículo vai passar determinada informação. Fui eu quem fechei o contrato dele com o The Guardian e o do livro que ele está escrevendo. Eu tenho um agente, mas sou eu quem dá a palavra final. É tudo para deixa-lo livre para escrever", afirmou.
Angústia em Londres
David Miranda tornou-se figura pública quando foi detido pela polícia metropolitana de Londres, a Scotland Yard, no mês passado, no aeroporto de Heathrow, dentro da lei que permite interrogatórios sem advogados sob a alegação de evitar ataques terroristas. Ele ficou nove horas dentro de uma sala, onde sofreu extenso interrogatório, e mais duas esperando do lado de fora, enquanto tinha o celular, câmeras, arquivos com material secreto, dentre outros objetos, confiscados.
"Quando o comandante avisou, na chegada (a Londres), que a gente teria que sair com o passaporte em mãos, eu imaginei naquele momento: 'eles sabem que eu estou aqui'", relembrou. Ele vinha de Berlim, para onde viajara ao encontro da documentarista americana Laura Poitras, que também recebera dados de Snowden. Eles trocaram arquivos.
"Quarta-feira (dia 14 de agosto), eu saí com a Laura e alguns amigos para o bar. Uma das meninas que estavam com a Laura tinha uma mochila que eu segurei por um tempo. Botei numa cadeira, e continuamos conversando. Em cinco minutos, aquela mochila com chaves, passaporte, todos os documentos da menina, sumiu", disse. "Ficou a pergunta: será que roubaram a mochila porque queriam alguma coisa que pensavam estar ali?."
Críticas ao governo brasileiro
Ele ainda critica a forma como o governo brasileiro tem lidado com as seguidas denúncias de espionagem, e também com o seu caso em específico. "O governo do nosso País foi extremamente fraco. O mundo inteiro viu que a reação do Itamaraty foi patética. Foi um ataque direto ao jornalismo, usaram a lei de forma errada. O Brasil não tomar nenhuma medida quanto a isso é uma vergonha. Saiu tudo isso aí (sobre a espionagem da presidente Dilma Rousseff e da Petrobras), e aí? Vão cancelar um jantar, apenas", disse, acerca da possibilidade de Dilma cancelar sua visita, em outubro, aos EUA.
Desde então, sua vida, a exemplo de como define o seu relacionamento com Glenn, teve como divisor de águas este episódio. "Hoje as pessoas me reconhecem. É um pouco estranho. Mas eu lido bem, as pessoas são solidárias em dizer que foi um grande abuso. Eu tenho que me adaptar. Isso aconteceria cedo ou tarde, já que o Glenn está escrevendo um livro contando meu papel nesta história toda", afirmou. David disse ainda que "ficamos três dias conversando para termos as certezas do quanto a nossa vida iria mudar. Somos dois adultos. Avaliamos o que poderíamos ganhar, e o que poderíamos perder."
David Miranda atua há quase um ano como colaborador do jornal The Guardian. A viagem para a capital alemã foi paga pelos britânicos. Ele e Glenn vivem juntos em uma casa no Alto da Boa Vista, próximo à residência do prefeito Eduardo Paes. Glenn e David vivem e trabalham juntos. Desde que escolheu ser o parceiro do companheiro nesse trabalho, entrou na sua rotina estar ciente de que alguém estará sempre o vigiando - seja de que forma for. "Eu sei que estou sendo espionado 24 horas. Não sei se fisicamente, mas estou sendo monitorado em todos os meus meios de comunicação", disse.
"Estes últimos dias têm sido de bastante estresse. Tenho dormido muito pouco, e tenho tido reuniões com senadores, advogados, tudo para bolar minha estratégia de defesa. Tenho tido também muitos encontros para definir estratégias de mídia para o Glenn em outros negócios. Então, haja café. Tem sido um companheiro inseparável", afirmou.
Infância pobre sem os pais
David Miranda tem hoje 28 anos, está próximo de se formar em Comunicação Social, com especialização em marketing, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). É bastante articulado, se veste bem, já viajou para diversas partes do mundo e fala inglês fluentemente. "Eu aprendi com videogame e televisão. E um pouco com o Glenn só", disse, rindo. Ele se diz aficionado por videogames. "Quero trabalhar na Sony, na estratégia de marketing dos produtos deles", afirma.
Os planos promissores foram construídos após uma base familiar na infância que, como ele explica, "não faltava roupa para vestir, mas não tinha brinquedo". Miranda nasceu na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, área carente que apenas recentemente teve instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), amenizando a situação de quem convivia com o tráfico.
Ele começou a trabalhar aos 9 anos. Para "começar a ter meu dinheirinho", atuou em uma casa lotérica como caixa, office boy, entregador de panfleto, despachante e operador de telemarketing. Saiu da casa da tia, onde vivia com os cinco primos, ainda adolescente, com 13 anos. "Eu quis buscar essa liberdade que eu demorei, na verdade, para conquistar. Fui morar com meus dois primos. Foi um momento bem barra pesada. Eu tinha que trabalhar quase todos os dias. E às vezes faltava um real para comprar o salgado", lembra David.
Amor à primeira vista
David tinha 20 anos quando a liberdade que buscava enfim passou a se concretizar em termos financeiros e de relacionamento quando conheceu Glenn nas areias de Ipanema. "Naquela troca de olhares" após pedir desculpas por quase acertar a bola de futevôlei no outro, se seria o companheiro com quem não tem dúvida em dizer que possui "uma forte conexão".
"Saimos para jantar, e era aniversário de uma das minhas primas. Fomos até a casa dela, e lá eu disse que eu tinha conhecido o homem da minha vida. É incrível que, até hoje, até esse momento, ele continua sendo. A gente consegue trabalhar junto antes mesmo de ele ser jornalista. É engraçado que os dois estavam saindo de um relacionamento recente e não estavam procurando por isso. E foi uma conexão muito forte, de imediato. Uma semana depois, a gente estava morando junto", contou.
Saimos para jantar, e era aniversário de uma das minhas primas. Fomos até a casa dela, e lá eu disse que eu tinha conhecido o homem da minha vida. Uma semana depois estávamos morando juntos
David Mirandacompanheiro de Glenn Greenwald
No relacionamento, que já dura quase nove anos, o companheirismo é a velha luta cotidiana para se manter junto a uma pessoa com quem se mora e trabalha junto. "A gente briga muito. Às 10h, a gente está batendo boca. Às 11h, está tudo bem. Às duas horas da tarde, recomeça a discussão. Não chega a ser um ‘relacionamento bipolar’, mas é que a gente está sempre trabalhando junto em casa, a gente vive junto, então sempre tem aquelas coisas que irritam. Se ele deixa a toalha em cima da cama, ou não cuida das coisas do jeito que eu acho que deve ser, já é motivo. Nós temos também 10 cachorros para cuidar", justificou.
"Mas os amigos mais próximos sabem do relacionamento que a gente tem. Eu amo muito ele, e sei que ele me ama muito. Existe minha vida antes do Glenn, e depois do Glenn. A gente se encontrou e se modificou. Tanto que ele era advogado, e hoje é jornalista, coisa que ele sempre gostaria de ter feito, mas não encontrava ambiente e possibilidade. A gente fala que é como se fosse destino mesmo a gente estar junto", disse David
"A gente não tem costume de ficar se beijando em público. Acho que esse tem que ser um comportamento de um relacionamento gay ou hetero. Apesar de ser um debate que está acontecendo, ainda existe muito preconceito. As pessoas não têm muita informação. É muita ignorância. Mas nunca sofri agressão física, apenas verbal, de gente na rua. Somos um casal gay que está lutando por direitos de liberdade de expressão, e de privacidade das pessoas. Todas essas pessoas são obrigadas a verem que nós somos gays. A gente força isso na mídia sem querer."
A relação com Snowden
Para Miranda, o ex-agente da NSA, Edward Snowden, sabia o que fazia. "Ele é um herói. Todo jornalista, e toda a pessoa que pensa na liberdade e se importa com sua privacidade, deve pensar nisso. Ele é um cara super inteligente, um baita estrategista. As pessoas podem imaginar por que ele foi para a China, e para Rússia. Ele sabia que essa seria uma ótima estratégia, tanto que não foi pego. Ele promoveu um debate que a gente está precisando desde a década de 90, desde que a internet passou a ser pública. Se a internet vai ser uma ferramenta de democracia ou de abuso de poder por parte do Estado para controlar a população."
Somos um casal gay que está lutando por direitos de liberdade e privacidade. A gente força uma mídia sem querer"
David Mirandacompanheiro de Glenn Greenwald
Miranda diz que não tem contato com Snowden. "Eu não tenho muito contato com ele, quem fala mais é o Glenn, mas posso dizer que ele é uma pessoa extremamente preparada. Você viu o que aconteceu com o (ex-soldado americano) Bradley Manning?"
Em 2010, Manning expôs os crimes de guerra dos Estados Unidos, e foi o único que foi julgado e preso. "Nenhuma das pessoas que cometeram crimes de guerra foram chamadas para depor, todas estão em liberdade. É uma mensagem direta que os Estados Unidos mandam: 'se você for contra o nosso sistema, você vai ter o mesmo final que ele'. O Edward Snowden está aí para mostrar que você não vai ter esse final. Existe uma alternativa. Tem muita coisa para vir ainda. Muita coisa (que ele deixou, e ainda vai ser publicada)."
Espionagem americana no Brasil
Matéria do jornal O Globo de 6 de julho denunciou que brasileiros, pessoas em trânsito pelo Brasil e também empresas podem ter sido espionados pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security Agency - NSA, na sigla em inglês), que virou alvo de polêmicas após denúncias do ex-técnico da inteligência americana Edward Snowden. A NSA teria utilizado um programa chamado Fairview, em parceria com uma empresa de telefonia americana, que fornece dados de redes de comunicação ao governo do país. Com relações comerciais com empresas de diversos países, a empresa oferece também informações sobre usuários de redes de comunicação de outras nações, ampliando o alcance da espionagem da inteligência do governo dos EUA.
Ainda segundo o jornal, uma das estações de espionagem utilizadas por agentes da NSA, em parceria com a Agência Central de Inteligência (CIA) funcionou em Brasília, pelo menos até 2002. Outros documentos apontam que escritórios da Embaixada do Brasil em Washington e da missão brasileira nas Nações Unidas, em Nova York, teriam sido alvos da agência.
Logo após a denúncia, a diplomacia brasileira cobrou explicações do governo americano. O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, afirmou que o País reagiu com “preocupação” ao caso.
O embaixador dos Estados Unidos, Thomas Shannon negou que o governo americano colete dados em território brasileiro e afirmou também que não houve a cooperação de empresas brasileiras com o serviço secreto americano.
Por conta do caso, o governo brasileiro determinou que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) verifique se empresas de telecomunicações sediadas no País violaram o sigilo de dados e de comunicação telefônica. A Polícia Federal tambéminstaurou inquérito para apurar as informações sobre o caso.
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