DIÁRIO DA MANHÃ
NAZARENO DE SOUSA SANTOS
Acho que tem alguma coisa muito errada sempre que eu me sinto impulsionado a manifestar, defendendo princípios, iniciativas ou fatos, com os quais não concordo.
O parágrafo inicial desse texto não é inédito. Já o repeti em alguns outros momentos. E também não denota incoerência. Se às vezes faço isso, faço em defesa do direito básico à manifestação de opiniões, ou na defesa da própria coerência, que faltam em alguns. Ou na busca por compartilhar alguma informação que possuo (ou julgo possuir), e que sinto que falta em algumas pessoas, para fortalecer posições ou argumentos.
Foi o caso, por exemplo, quando defendi o direito do governador Marconi Perillo, de cursar a graduação de Direito, com horário diferenciado, em uma universidade privada.
Foi, também o caso, quando manifestei meu apoio aos médicos grevistas.
Não que eu concorde com as mortes que acontecem por falta de atendimento médico. Nem com a total mercantilização da educação. Ou com quaisquer outras distorções que o capitalismo gera, não por pura maldade de alguns, mas pela natureza desse sistema, que tem em sua essência a necessidade de gerar desigualdades para que tenha razão de existir.
Eu não concordo. Mas eu não concordo com o sistema. Com o DNA do sistema. E se vou fazer gestão para mudar alguma coisa, vou pretender transformar o sistema por completo, e não fazer pequenos ajustes aqui e ali. E, enquanto viver nesse sistema, mesmo não concordando, defenderei o direito ao lucro e à exploração, afinal são partes visceralmente ligadas ao todo (e por vezes se confundem).
Agora mesmo, estou aqui para falar de algumas iniciativas das quais eu discordo, em parte. E, mesmo assim, me sinto forçado manifestar, expondo o pouco que sei, e o muito que acredito, por discordar mais ainda, das manifestações que tem me chegado. O peculiar, nesse caso, é que as manifestações, que me motivam também se dizem contrárias a essas mesmas iniciativas. Mas como nossos motivos são distintos. Aliás, os motivos que os grandes críticos apontam nada têm a ver com os motivos dos quais eu discordo. Pelo contrário. Acredito que, se encararem da mesma forma, os críticos têm muitos motivos para concordar. Ao contrário de mim.
Antes que fique mais confuso ainda, vou ao ponto.
Estou falando aqui dos investimentos feitos pelo governo brasileiro, logo pelo Brasil, em outras nações. São apontados com mais frequência o financiamento do porto de Mariel e do metrô de Caracas e o perdão de dívidas de países africanos. Mas há outras “saídas” de recursos brasileiros. E é sobre isso que estou falando.
Vou começar contestando o discurso “fácil” dos que dizem que o governo brasileiro, do PT, está financiando o fortalecimento das ditaduras de Cuba, da Venezuela e da Bolívia. Não cabe aqui aprofundar no debate tendencioso de quem fala por ouvir dizer, ou que se informa apenas pelas mídias mais tendenciosas ainda. Mas, vejam meus amigos, o que esse governo está implementando na área de investimento direto no exterior, não se trata de um devaneio pensado por Lula ou Dilma. Trata-se antes de um programa que antecede à eleição de 2002. E nada tem a ver com a intenção de criar, na América Latina, uma grande nação bolivariana, como alguns mais alucinados, ou menos informados, insistem em propagar.
Vamos entender melhor. Está em curso, no planeta, várias iniciativas de “integração” sejam regionais, ou por afinidade. De livre comércio, ou de unificação de moedas. Caso da União Europeia, Mercosul e Brics. É a “nova ordem mundial” sendo consolidada, meu amigo.
Por essas bandas, desde agosto de 2000, existe uma dessas iniciativas. Surgida em Brasília, durante reunião dos presidentes da América do Sul, a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (mas pode chamá-la de Iirsa), é um programa composto por uma série de proposta e iniciativas visando o desenvolvimento e a integração da América do Sul através da implementação de um grande conjunto de obras nas áreas de energia, telecomunicações e transporte. Portanto, trata-se da tentativa de fortalecer o modelo capitalista de desenvolvimento. Não de construir uma nação bolivariana.
E, nesse contexto, o Brasil, sobretudo com o governo Lula, soube reconhecer seu importante papel de liderança, e assumir a dianteira. Quem observar, mesmo sem muito esforço, vai enxergar no PAC uma grande quantidade de propostas cujo sentido de existir nada mais é que a consolidação da Iirsa. Para garantir a posição de liderança, o governo tratou de fortalecer a atuação do BNDES no exterior. E o banco genuinamente brasileiro passou a financiar projetos em nações vizinhas.
Acontece que os grandes empresários brasileiros sempre pretenderam expandir seus investimentos fora das fronteiras tupiniquins. E o governo (e aqui o grande mérito de Lula, do ponto de vista estratégico dos capitalistas, e não bolivariano), enxergou grande oportunidade de se fortalecer no cenário mundial. Aproveitando, inclusive, a crise de 2008. O governo do PT iniciou um movimento até então impensado por boa parte da população brasileira. Ele ousou se apresentar, não mais como figurante no jogo financeiro internacional, mas como protagonista. Para tanto, em 2009 abriu os primeiros escritórios do BNDES fora do Brasil. Em agosto em Montevidéu, e em novembro no Reino Unido. Mais recentemente, em dezembro de 2013, se instalou em Joanesburgo.
“Tudo bem, mas Cuba não está incluída na Iirsa”, alguém pode estar me dizendo agora. Acontece que os arranjos regionais ainda são coisas relativamente recentes e, por isso mesmo, dinâmicos. E, ao perceber as vantagens da nova posição, por que o Brasil deveria limitar suas ações apenas nos vizinhos fronteiriços? Além do mais um novo arranjo se consolida. E esse com uma abrangência territorial bem maior. Trata-se da CELAC - Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, que vai da patagônia até o México, abrangendo todas as ilhas do Caribe. São 33 países. E é aí que Cuba se localiza.
Tudo bem, não sou economista, agente de aduana, industrial milionário, delegado aloprado, nem prêmio Nobel. Também não sou discípulo de Marx ou de Adam Smith, mas entre 2008 e 2009 participando ativamente das discussões da Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais, tive oportunidade de discutir, e ouvir, sobre o assunto com pessoas estudiosas do tema, e também com pessoas influentes na área. Algumas vezes, inclusive, com o próprio presidente do BNDES Eduardo Coutinho, (além de ser um tanto curioso quanto ao que acontece no mundo em que habito) por isso sei que, muito mais que o esforço em fortalecer qualquer iniciativa de integração regional, o aumento dos investimentos diretos no exterior – IDE (veja que existe até uma sigla pra isso), promovido pelo governo brasileiro, e por empresas nacionais, tem mais relação com uma visão estratégica de expansão capitalista.
Senão, vejamos. O complexo de Mariel não se limita ao porto. Mas à criação de uma zona especial de desenvolvimento (um tipo de zona franca), com área de 500km2 a partir do porto, e onde empresas do mundo todo querem se instalar. E a atuação do Brasil garantirá espaço para diversas empresas brasileiras que já estão se instalando, ou que irão se instalar.
E, por que cargas d’água grandes indústrias, iriam querer se instalar em Cuba? (incluindo a Câmara de Comércio Americana, isso mesmo, os protegidos do Tio Sam, se articulam para garantir suas presenças nesse local, pressionando, inclusive a Casa Branca para que estreitem os laços com o governo de Raul Castro). Simples, meus amigos, em breve essa região se tornará uma das mais importantes zonas comerciais do planeta. E a Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel pode se tornar a galinha dos ovos de ouro das próximas décadas. Superando, inclusive, as grandes zonas chinesas.
Claro, isso se deverá, em grande parte a outro grande projeto em curso, nesse exato momento, na região do Caribe. Trata-se da ampliação do Canal do Panamá, que depois de concluída, permitirá a passagem de super navios, ampliando significativamente o fluxo de mercadorias e serviços por ali, com potencial para se tornar a maior rota comercial do mundo. Você, capitalista liberal, quer mesmo que o Brasil fique fora de tudo isso?
Quanto aos investimentos na África, incluindo perdão de algumas dívidas nacionais, não podemos nos esquecer que essas ações criaram o ambiente que está permitindo a instalação, e operação de diversas empresas brasileiras naquele continente. A África hoje constrói uma nova etapa em sua história. E a presença brasileira está sendo importante, do ponto de vista do crescimento econômico/industrial, para os africanos. E isso está possibilitando ao Brasil, também lá, uma posição de liderança, intervindo diretamente no futuro de vários países. E, principalmente, criando mercado consumidor e gerando lucros para empresas brasileiras. Atuação puramente capitalista (ou estaria o PT querendo transformar também a África em uma grande nação bolivariana?).
Aumento do investimento direto no exterior pelo Brasil não se restringe à Cuba e à Venezuela, e em nada tem a ver com o fortalecimento do comunismo na região. Pelo contrário, é consequência direta da cobrança dos grandes empresários brasileiros, que sempre pretenderam ampliar suas atividades no mundo (vide o Relatório dos Investimentos Brasileiros no Exterior 2013 – Recomendações de Políticas Públicas para o Brasil, publicado pela CNI), e da visão estratégia do governo, que enxergou a possibilidade de liderar vários processos mundo afora. (E não podemos nos esquecer da articulação dos Brics, e da recente, e mundialmente impactante, criação de um banco próprio de fomento para esses países).
E é exatamente aí que reside minha discordância quanto a essas ações. Eu concordo que dentro de um mundo liberal capitalista, o Brasil está no caminho certo. Ouso dizer, inclusive (e alguns podem dizer que, com uma grande dose de devaneio) que, em seguindo esse curso, o Brasil está pavimentando o caminho, curto, para se tornar uma das maiores potências do mundo, em um futuro breve.
Mas discordo. E discordo do objetivo geral de tudo isso. Não me alegra ver o Brasil atuando exatamente da mesma forma imperialista que sempre repugnei em governos como o dos EUA, por exemplo. Não concordo que a única opção de quem deixa de ser explorado, seja explorador. Acredito que o Brasil tenha vocação bem mais nobre que se tornar mais um império na história. Se é pra liderar, e o Brasil tem condições para isso, que lidere diálogos e iniciativas libertadoras para todos. Se for para impactar países em todos os continentes, que faça isso na construção de algo mais próximo do que chamamos de paz.
O Brasil está se fortalecendo cada vez mais no cenário internacional, dentro do sistema capitalista em que vivemos. Mas não gosto do sistema. Isso não significa que eu seja comunista, nem que eu defenda governos totalitários e/ou ditatoriais. Não defendo. Por isso tenho repetido que já passou da hora de pensarmos em um sistema novo. Algo realmente e completamente novo. Já que todas as tentativas anteriores falharam. Inclusive o capitalismo. Eu já disse que o capitalismo estava falido. Hoje não digo mais. Digo que ele é um sistema inviável no médio prazo, não por ter falido. Mas por ter tido muito êxito no cumprimento de seus princípios. O capitalismo é muito eficiente em gerar lucros. O problema é que para isso requer cada vez mais, e mais, elementos da natureza (chamado de recursos naturais) e a exploração de cada vez mais pessoas (reduzidos à recursos humanos), por cada vez menos pessoas. E nenhuma dessas coisas se sustenta por muito mais tempo.
Essa é minha opinião. E você pode ou não concordar comigo. Mas, se você acha que o sistema é perfeito, que o capitalismo é “o que há”, então não entendo que fale mal dos investimentos brasileiros em Cuba, ou em qualquer outro lugar desse planetinha errante.
Enxergo isso e, por isso, estou aqui “defendendo”. Até por entender que, independente de quem se eleja no dia 26, o projeto macroeconômico não será alterado. Afinal é um projeto de país, e não um programinha partidário. E há muito mais forças controlando esse timão do que consigo enxergar daqui. Desse ponto de vista, Dilma e Aécio representam o mesmo projeto. O que difere, e que me faz decidir em quem votar, é um detalhe que, apesar de pequeno (por ser detalhe), faz toda diferença. Que é a opção pelos pobres, mesmo que tímida. E, entre os dois, quem tem essa opção, por toda história, é Dilma e seu núcleo central de apoio. E nesse cenário que estou vislumbrando para breve, no Brasil, se não houver iniciativas reais de distribuição de riquezas, veremos o abismo entre os pobres e os ricos, se tornar tão enormes como nunca imaginado. Pois teremos cada vez mais brasileiros super ricos, decorrência de todo o exposto, e na outra ponta, multidões cada vez mais miseráveis (o capitalismo é muito eficiente em aplicar seus princípios). Por isso, e só por isso espero que Dilma seja novamente eleita.
(Nazareno de Sousa Santos, escritor, colaborador do Instituto Brasil Central – Ibrace. Não gosta do capitalismo e sonha com outro sistema. Mas reconhece que, para viver nele, é preciso obedecer a suas regras, gostando ou não – www.deriva-pi.blogspot.com)
FONTE:
http://www.dm.com.br/texto/194621-brasil-um-projeto-bolivariano-ou-imperialista
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