Legalizar a cannabis e acabar com a guerra às drogas não é somente uma
questão de liberdades individuais. É também uma questão de segurança
pública e de direitos humanos.
A guerra às drogas está dizimando
a juventude mais pobre das periferias, que morre vítima das lutas de
facções, da repressão ao tráfico, da violência policial e das milícias.
Ou é encarcerada pelo comércio ilegal de drogas ou, em muitos casos,
pelo uso delas.
Dependendo da cor e da classe social, a mesma
quantidade de substância pode ser considerada para uso ou para tráfico, e
a pessoa pode ir parar em presídios superlotados, que são verdadeiros
infernos e escolas do crime.
Por isso, o projeto de lei 7270/2014,
que protocolei na Câmara dos Deputados, faz muito mais do que legalizar
a maconha: ele propõe uma série de mudanças radicais na política de
drogas do Brasil.
A legalização tem sido o aspecto mais
comentado do projeto, tanto por aqueles que são a favor quanto por
aqueles que se opõem, mas a proposta vai além. Entre a lei e sua
justificativa, são 60 páginas que recomendo ler a quem quiser
criticá-lo. E neste artigo quero falar sobre um ponto do projeto em
particular: a anistia.
Números
Mas
antes disso, como diz o mestre Eugênio Raul Zaffaroni (jurista
argentino), "vamos ouvir a palavra dos mortos". De acordo com o
Ministério da Saúde, o uso de drogas matou 40.692 pessoas entre 2006 e
2010. Desse total, 34.573 (84,9%), morreram em decorrência do abuso (não
confundir com o uso) do álcool, e 4625 (11,3%), do tabaco.
Quer
dizer: 96,2% das mortes diretamente relacionadas ao uso de drogas foram
causadas por duas substâncias que, na atualidade, são lícitas. A droga
cujo abuso mais mata, o álcool, não só é comercializada legalmente, como
também tem propaganda na televisão — feita até por deputados!
E
a maconha? No relatório, ela sequer é mencionada porque é raro alguém
morrer por overdose de cannabis, que, no entanto, é ilegal. Vejam que
contradição! Mas tem uma série de dados em que os números se invertem:
quando falamos das mortes decorrentes do tráfico ilegal e da guerra às
drogas.
Lula Marques/Folhapress A droga cujo abuso mais mata, o álcool, não só é vendida legalmente, como também é vendida na televisão - até por deputados! sobre a diferença de mortes por abuso de álcool e drogas ilícitas
A proibição mata muito mais do que o uso de qualquer droga. E como a
maconha, segundo a ONU, é a droga consumida por 80% dos usuários de
drogas ilícitas, podemos dizer que a proibição da maconha é o que mais
mata.
De acordo com um relatório dos repórteres Willian Ferraz,
Hugo Bross, Kaio Diniz e Vanderson Freizer, 56% dos assassinatos no
Brasil têm ligação direta com o tráfico. Os mortos, em sua grande
maioria, são jovens pobres de 15 a 25 anos. E são mais de 50 mil mortes
por ano.
Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), só no
Rio de Janeiro, em 2013, houve 4761 homicídios, 16,7% mais que em 2012.
Desse total, 416 foram assassinatos cometidos pela polícia e registrados
sob o eufemismo de "auto de resistência". O panorama é assustador em
todo o país.
Entre 1980 e 2010, a taxa de mortalidade por armas
de fogo no Brasil cresceu de 7,3 a 20,4 por cada 100 mil habitantes, mas
esse número, já altíssimo, dobra quando falamos dos jovens: quando as
vítimas têm entre 15 e 29 anos, a taxa é 44,2. E a principal causa disso
é a guerra às drogas.
Mas essa "guerra" impediu que as pessoas
consumissem drogas ilícitas? Não. De acordo com um estudo do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e
Outras Drogas da Unifesp, a maconha é consumida por mais de um milhão de
brasileiros, e 7% dos adultos já fumaram alguma vez. Dentre eles, 62%
tiveram o primeiro contato com a maconha antes dos 18 anos de idade.
Hoje, como a maconha é liberada, não tem maneira de impedir que um
menor de idade vá comprar numa "boca". E todo o mundo sabe onde fica a
boca mais próxima.
A política de guerra às drogas - além de não
diferenciar o uso do abuso de drogas e nem reduzi-los, não regular o
comércio, não controlar a qualidade das drogas que são vendidas, não
recolher impostos, não impedir o acesso a elas dos menores de idade,
gastar fortunas e matar milhares de pessoas a cada ano - também envia
milhares de jovens para os presídios.
A guerra às drogas, além de ser cara e inútil, está produzindo uma tragédia sobre a política de combate ao tráfico de entorpecentes
De acordo com dados coletados pelo portal G1, o total de pessoas
encarceradas no Brasil é de 563.723 (bem mais que a capacidade das
prisões, que é de 363.520 vagas), e em 20 anos esse número aumentou em
450%.
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo,
depois da China, dos EUA e da Rússia, e, de acordo com dados do
Ministério da Justiça de dezembro de 2012, a maioria dos presos é jovem
(52% têm entre 18 e 29 anos), negro ou pardo (58%), e quase um de cada
quatro (24%) está preso por comércio de drogas ilícitas.
O que
esses números e outros que poderiam ser mencionados mostram é que a
guerra às drogas, além de ser cara e inútil, está produzindo uma
tragédia. Por isso, além de legalizar e regulamentar o comércio de
maconha, meu projeto propõe duas medidas que, eu sei, serão polêmicas — e
peço atenção, porque provavelmente serão distorcidas pelos
fundamentalistas de sempre —, mas considero que sejam imprescindíveis
para reduzir a violência e a criminalidade (e a criminalização muitas
vezes desnecessária).
O projeto
Em
primeiro lugar, proponho uma anistia geral para todas as pessoas presas,
processadas ou indiciadas por tráfico de maconha. Isso não inclui
aqueles que tenham praticado outros crimes (por exemplo, quem tiver
matado), e nem os policiais e outros agentes públicos envolvidos no
tráfico.
O objetivo dessa primeira anistia, que é uma
consequência lógica da descriminalização do comércio de cannabis (mas,
por uma questão de técnica legislativa, precisava ser explicitada), é
liberar aqueles que tenham sido presos ou acusados apenas por vender
maconha. A maioria é composta por vapores, aviões, pequenos assalariados
do tráfico, jovens e adolescentes que moram nas periferias e nas
favelas e que entraram no "movimento" porque era o que o país lhes
oferecia para ser alguém na vida.
Leo Franco/Agnews Proponho uma anistia geral para todas as pessoas presas, processadas ou indiciadas por tráfico de maconha, exceto para policiais e para aqueles que tenham praticado outros crimes sobre um dos pontos do projeto de lei que protocolou na Câmara dos Deputados
O conceito de traficante está inchado porque inclui, como se da mesma
coisa se tratasse, o chefe de uma quadrilha internacional e o menino
pobre que trabalha (sim, trabalha) no último elo da cadeia do tráfico. E
somente esses últimos é que são presos, na maioria dos casos, e têm a
vida estragada quando ela apenas começou.
Inserção na sociedade
O Estado é culpado por esses meninos terem se envolvido no tráfico,
porque a escolha deles é consequência direta de outras muito mais
erradas que o Estado tem feito nas últimas décadas. Em vez de
trancafiá-los num presídio e condená-los à marginalidade e ao crime, o
país deveria lhes oferecer uma alternativa de vida.
A lei que
proponho dá o primeiro passo, deixando esses jovens em liberdade e
apagando seus antecedentes, que são a marca que o sistema punitivo deixa
neles para sempre, para que nunca mais deixem ser rotulados como
"bandidos". O poder público deverá completar a tarefa, fazendo da
legalização uma transição entre o velho e o novo, mudando o contexto em
que esses jovens vivem.
A segunda anistia explica por que não
seguimos o modelo uruguaio de legalização da maconha, que estabelece o
controle estatal da produção e comercialização: esse modelo resolveria a
questão das liberdades individuais (o direito dos usuários de maconha a
comprar a planta e seus derivados legalmente), mas de nada servia para
acabar com o tráfico ilegal e oferecer uma saída a esses jovens.
Luis Macedo/Câmara dos Deputados O conceito de "traficante" está inchado, porque inclui o chefe de uma quadrilha internacional e o menino pobre que trabalha no último elo da cadeia do tráfico sobre a política de combate às drogas
Por isso, estamos propondo que, depois da sanção da lei e por um
determinado prazo, outra anistia seja oferecida àqueles que praticam o
comércio ilegal da maconha e de outras drogas e não foram ainda
indiciados ou condenados por isso, mas querem se inserir na legalidade.
Isso quer dizer que o dono de uma "boca" poderá se registrar como
comerciante legal de maconha, cumprindo todos os requisitos da lei,
abandonando as armas e a violência, assim como o comércio das outras
drogas ainda ilícitas, e pagando impostos (que, imagino, serão mais
baratos que a propina da polícia). E viramos a página.
Eles não poderão ser presos por terem sido, antes disso, traficantes, desde que não tenham cometido crimes violentos.
A legalização da maconha é um primeiro passo que, feito dessa maneira,
além de garantir as liberdades individuais dos usuários, será uma
ferramenta fundamental para reduzir a violência, deixar de encher nossas
prisões e acabar com uma guerra que já matou gente demais.
O
resto do trabalho deverá ser feito, a médio e longo prazo, por uma
política de Estado diferente da atual, que ofereça outras oportunidades
de vida àqueles que hoje têm o comércio ilegal de drogas como única
saída. Não vai ser com mais militarização e mais polícia que vamos
resolver esse problema.
FONTE:
http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/04/30/maconha-deve-ser-legalizada-e-traficantes-da-droga-anistiados.htm
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