quarta-feira, 10 de abril de 2019

SISTEMA DE CRÉDITO SOCIAL CHINÊS USA ESPÉCIE DE RANKING MACABRO E IMPEDE PESSOAS DE VIAJAREM DE AVIÃO


Imagine viver em um país onde sua conduta é mais importante do que o dinheiro na sua carteira, onde você pode receber benefícios por ser um “bom cidadão” ou ser proibido de fazer coisas básicas, como viajar, por não pagar multas ou impostos. É esse sistema que está conduzindo a vida de muitos chineses atualmente, e o resultado tem sido, no mínimo, controverso.

O polêmico programa de crédito social chinês deu o que falar quando foi iniciado. Com cara de “Black Mirror”, o sistema ainda está se expandindo por todo o território nacional, beneficiando aqueles que têm mais crédito, que é adquirido por compras online, com o pagamento de dívidas e boas atitudes do dia a dia — os moradores são vigiados por milhares de câmeras com reconhecimento facial espalhadas pelo país.



(Imagem: Reprodução/The New York Times)

Os chineses com pouco crédito têm empréstimos limitados, matrículas proibidas em algumas escolas e são impedidos de assumir cargos públicos. Ademais, a compra de 17,5 milhões de passagens aéreas e 5,5 milhões de bilhetes de trem foi negada a esses cidadãos, segundo um relatório anual do órgão governamental responsável.
Abuso de privacidade

A criação do sistema de créditos é um claro mau uso do enorme avanço da capacidade de hardware e inteligência artificial, mas o governo chinês justifica a existência do sistema como uma forma de melhorar o comportamento em sociedade. Além dos problemas de privacidade, não há transparência sobre as regras impostas, tampouco são divulgadas formas de recuperar pontos perdidos.


(Imagem: Reprodução/Reuters)

Companhias e comerciantes também são afetados pelo sistema. Quando listados como “não confiáveis”, podem perder acordos com o governo e direito a empréstimos ou serem proibidos de importar produtos. A prática já foi criticada internacionalmente, inclusive pelo vice-presidente estadunidense, Mike Pence: “É um sistema ‘orwelliano’, com a premissa de controlar todos os aspectos da vida humana”, fazendo referência aos conceitos criados por George Orwell.



“Crédito Social”: a China ranqueia os cidadãos


Sonegar impostos. Jogar lixo na rua. Dirigir de modo selvagem. Ler pornografia. Na mega base de dados em teste, tudo é computado – e “disciplinar e punir” parece ser a lógica


Por René Raphael e Ling Xi, em The Nation | Tradução: Marianna Braghini

Estávamos perto da entrada do Hospital do Povo Nº1 de Hangzhou, na província de Zhejiang, a sudeste de Shanghai. Uma senhora que parecia esperar um táxi, de repente pulou por cima da barreira da rua, se inclinou no capô de um carro alemão, pulou e sentou no chão, de braços cruzados. O jovem motorista, frenético, saiu do carro e foi até ela. Eles discutiram por uma hora em frente de enfermeiras e policiais que passavam, até que concordassem no pagamentos dos danos.

As plataformas chinesas de vídeos online mostram muitos incidentes do tipo “toque a porcelana”1, onde pessoas se arremessam na frente de carros para alegar danos. Eles podem ser engraçados; mais frequentemente, são apenas dramáticos. Estas extorsões – e fraudes na saúde pública, alimentação e produtos falsificados – deixam as pessoas enraivecidas e ajudam a explicar por que elas estão dispostas a aceitar quaisquer medidas governamentais que visem o fim das fraudes.

A medida mais importante é o novo sistema de vigilância de “crédito social”. Desde o último verão, palavras como honestidade (cheng) e credibilidade (xin) apareceram nos banners de propaganda, que acompanham uma crescente panóplia de mecanismos públicos e privados que avaliam indivíduos, funcionários, empresas e setores profissionais, recompensam os bons e punem os maus.

Lin Junyue, um pesquisador de Pequim, trabalha em um sistema assim desde 1999, quando foi nomeado engenheiro-chefe de uma equipe montada sob requisição do então Primeiro Ministro Zhu Rongji. Lin disse: “Companhias americanas pediram a Zhu que criasse ferramentas para provê-los de mais informações sobre empresas chinesas com quem queriam trabalhar. Eu fiz diversas viagens de estudo para os EUA com meus colegas, e percebemos que teríamos que criar algo ainda melhor: um sólido sistema que documentasse a credibilidade de cidadãos e empreendimentos chineses. Nosso relatório ‘Rumo ao Sistema Nacional de Administração de Crédito’ saiu em março de 2000, logo antes que duas assembleias nacionais acontecessem. O termo ‘crédito social’, seguiu-se em 2002, quando um funcionário do governo sugeriu uma simetria léxica com ‘segurança social’.”

Em 2006, o Banco Popular da China adotou o princípio de pontuação mediante critérios, que, como sua contrapartida do EUA, usa uma classificação de 300 (muito ruim) até 850 (excelente). Lin disse, “Nós queríamos explorar o crédito no sentido mais amplo possível, ao recolher uma grande quantidade de informação, por exemplo, do Ministério de Segurança ou Ministério da Industria e Informação Tecnológica. Tal projeto foi ratificado pela comissão nacional de desenvolvimento e reformas, em 2012.”

Lin rejeita qualquer comparação com o episódio da série britânica de TV, BlackMirror, na qual a sociedade é controlada por avaliações de crédito social. Ele refuta a ideia de uma classificação individual em toda uma nação. “Não estamos fazendo isso, apesar de, de fato, irmos mais além do padrão de avaliação de solvência. Todos os tipos de dados são recolhidos ao longo do tempo sobre indivíduos ou empresas sem histórico econômico, para que tenham acesso a crédito, pedidos de propostas e muito mais.”

Devedor com nome na lista suja do governo é exibido em outdoor de led na cidade de Taishan

O sistema está sendo testado até 2020 por 43 municípios, cada um com seu próprio critério, sistema de letras ou pontos e nome: em Suzhou, chama-se Crédito Social Flor de Cerejeira; em Xiamen, Jasmim. Quase todos usam dados de redes sociais ou aplicativos de celular, além de uma sofisticada vigilância por vídeo. Próximo de 2020, a maior parte dos espaços públicos chineses estará equipada com câmeras de reconhecimento facial sob o sistema da Skynet. Em muitas áreas rurais, o projeto Olhos Agudos permite que as pessoas conectem seus esquipamentos de televisão ou celular, a câmeras de vigilância na entrada de suas vilas.

“A benção da segurança”

“Uma sensação de segurança é a melhor benção que um país pode dar a seu povo,” disse o Presidente Xi Jinping em um documentário na televisão nacional, logo antes do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista, em outubro de 2017; 42% das câmeras de vigilância de todo o mundo está na China.

Lin Junye atualmente monitora como estes municípios pioneiros usam seu programa. “Em Suqian, respeitar as leis de trânsito emergiu como uma demanda importante…Em Rongcheng, o foco é na moralidade e mentalidade cívica, enquanto Hangzhou é obcecado com sua reputação como uma cidade inovadora. Nossa equipe examina tudo de perto, enquanto trabalha na proteção de dados pessoais, porque devemos ter uma estrutura para tal. Há critérios internacionais nisso, ISO/TC 290, mas são excessivamente protetoras e dificultam a economia…Até 2020, as regras estarão definidas e teremos planejados as penalidades e bônus. Teremos a infraestrutura e o país irá adotar o sistema.” Será lançado um ano depois em Pequim.

Desde 2015, Hangzhou, a sudoeste de Shanghai, combinou dois sistemas — um embrionário, municipal de que ninguém com quem conversamos ouviu falar; e um sistema privado de classificação de crédito, o Crédito Sésamo, popular e muito admirado pelas autoridades. Ele pertence ao Grupo de Serviços Financeiros Ant, o braço financeiro do gigante de comércio eletrôpnico da China, a Alibaba, cuja sede está em Hangzhou. A Crédito Sésamo designa pontos de 350 até 950 aos usuários do aplicativo de pagamento online da Alibaba, o Alipay, que é bem popular na China e basicamente é monopólio em Hangzhou. Clientes com boas avaliações recebem privilégios especiais e acesso a produtos financeiros lucrativos, bem como a plataforma Huabei de empréstimos online, subsidiária da Alipay.
A menina dos olhos da Ant Group

Os novos escritórios da Finanças Ant, que mudou duas vezes em quatro anos, são chamados de espaços-Z e foram arquitetados por uma firma de Seattle (EUA). Guardas de seguranças musculosos vigiam um constante fluxo de jovens funcionários com os últimos fones de ouvido da Beats, chegando em bicicletas elétricas ou carros esportivos. A Alipay é uma das jóias na coroa do grupo Ant, com 700 milhões de usuários ativos em setembro de 2018 (500 milhões em 2017). Basta escanear um código QR para completar transações. Quem precisa de dinheiro, quando até os mendigos na rua carregam QRs no pescoço?

A Alipay fornece para a Finanças Ant dados pessoais como detalhes de corrida de táxi, compras de supermercado, despesas médicas e até atos de generosidade. Assim como o Facebook gera publicidade a partir da atividade online dos usuários, a Credito Sésamo usa os dados de compras pagas através do Alipay. O porta-voz da Finanças Ant, Le Shen, diz: “Com clara autorização, a Sésamo coleta e analisa cinco dimensões de dados coletados através da plataforma Alipay e outras plataformas parceiras, como agências de reserva de hotéis.” Isso inclui “transações de compras, preenchimento das obrigações contratuais (como pagamento de cartão de crédito e de carros alugados), ativos individuais (produtos de gerência de riqueza e certificados de propriedade privada que os usuários optam por compartilhar), perfil do usuário (como certificados de ocupações profissionais e nível educacional que os usuários escolham compartilhar) e o padrão de transferência de dinheiro entre usuários do Alipay.” “E também,” ele adicionou “a Sésamo não coleta informações como geolocalização, mensagens de texto e histórico de ligações.”

Em fevereiro de 2015, o diretor de tecnologia da Crédito Sésamo, Li Yingyun, explicou um pouco sobre como as avaliações são calculadas. Ele disse à revista Caixin que comprar fraldas seria considerado comportamento responsável, enquanto jogar videogame por muitas horas poderia contar adversamente. Nenhuma notícia mais foi vazada sobre quais dados são capturados pelo algorítimo.

A Finanças Ant não é a única organização interessada em pessoas com boas avaliações na Sésamo. Empresas e até consulados estrangeiros tentam atrair indivíduos muito promissores, enquanto o serviço de namoro online Baihe promove solteiros com as melhores avaliações. Os poucos classificados acima de 650 pontos podem ter depósitos dispensados, ou receber descontos em grupos de hotéis, aplicativos de compartilhamento de bicicleta e companhias de aluguel de carros. Eles obtém acesso a uma plataforma especial de aluguel de equipamentos para fotografia, vídeo e TI. Uma boa avaliação na Sésamo pode apoiar um pedido de visto para Singapura ou Canadá.
Uma boa avaliação na Sésamo

Em 2004, o município de Hangzhou emitiu um cartão de cidadão para todo residente acima de 16 anos. É um crachá magnético multifuncional que serve como cartão de seguridade social, cartão de transporte, é um meio de pagar multas de trânsito em pontos específicos e permite acesso gratuito a parques. As autoridades anunciaram que iriam usá-lo para criar um vasto banco de dados para entender as necessidades locais. Desde junho de 2018, os portadores do cartão podem usar um aplicativo de celular para os mesmos serviços. Os usuários e suas avaliações na Crédito Sésamo são identificados a partir de reconhecimento facial – prova da conexão entre a empresa privada Alibaba e a administração da cidade. Para as autoridades municipais, uma boa avaliação na Sésamo significa um bom cidadão. O Banco Central, que só teve sucesso em designar uma avaliação de crédito para 25% da população chinesa em 2015, por um tempo permitiu que a Sésamo e outros sete empreendimentos financeiros acessem todo os dados bancários e de impostos. Em meio de 2018, ele finalmente montou seu próprio sistema de avaliação de crédito, chamado Baihung, com estes oitos negócios financeiros como acionistas minoritários.

A cidade portuária de Rongcheng na província de Shandong é um bom exemplo de um sistema municipal de crédito social totalmente operacional, supervisionado por funcionários do Estado locais. Lin Junyue disse, “Enquanto Hangzhou construiu sua imagem com as companhias de alta tecnologia, dando mais que o devido à Crédito Sésamo, Rongcheng é conhecida por sua ativa administração de crédito cidadão. A cidade foca em aumentar os padrões morais de seus habitantes e provê muitos incentivos.”


As famílias “mais civilizadas” são exibidas publicamente em outdoors como este nas cidades

Rongcheng é uma mistura de zelo, convicção e medidas improvisadas. No início da tarde, o parque em volta da prefeitura estava deserto; um casal de idosos em túnicas remendadas nos contou por que: “As pessoas estão correndo para suas televisões porque é a hora do People’s Live 360.” Todas as tardes os canais locais transmitem as gravações de vigilância do dia anterior: roupas de baixo penduradas no corrimão de um conjunto habitacional, um sofá velho deixado no pavimento, motoristas não reduzindo a velocidade nas faixas de pedestre, pedestres desatentos ao trânsito são todos exibidos com identificação numérica, rostos e às vezes nomes, entre advertências policiais.

Rongcheng era uma pequena cidade conhecida pela pesca, empresas de fabricação de trailers, reboques e um santuário de inverno para a migração de cisnes da Mongólia. Ela cresceu rapidamente em seis anos, absorvendo todas as vilas no perímetro de 19km. Em 2013, o sistema de crédito social foi instituído, abrangendo a maior parte das 919 vilas sob sua jurisdição. Isso levou a uma notável mudança no comportamentos e interações sociais.

Cada cidadão começa com a classificação em A e um capital de mil pontos. À medida em que ganha ou perde pontos, pode ascender a A+ ou cair para B, C ou D. A perda de apenas um dos pontos iniciais é suficiente para te levar à classificação B, o que significa a recusa de uma hipoteca. As pessoas recebem suas classificações como um certificado da nova prefeitura.
Motoristas agora param para pedestres

Como qualquer um pego jogando lixo na rua corre o risco de perder três pontos, não há mais bitucas de cigarro ou latas vazias no chão e nos ônibus da cidade. Por conta das numerosas câmeras com tecnologia de ponta e feitas pela Hik Vision – líder mundial em vigilância por vídeo, cujo principal acionista é o governo chinês – a polícia não precisa fazer monitoramento em pessoa. Atravessar uma rua na cidade de Rongcheng não é mais um desafio: os motoristas param para os pedestres, o que é raro na China. Se falharem, a penalidade é dura: uma multa de 50 yuans (U$7,35), três pontos descontados na carteira de motorista (que inicia com 12 pontos), e cinco pontos descontados no crédito social. “Aconteceu da noite para o dia, na primavera de 2017,” disse um transeunte. “Os carros de repente paravam em nossa frente. Eu não sabia o que fazer.”

Muitas vizinhanças adotaram um código de boa conduta de residentes. No distrito de Qingshan, grandes cartazes enfatizam as prioridades: livros e filmes pornográficos, ou “amarelos” estão banidos, bem como o cultivo de vegetais nas ruas, ir a igrejas não registradas, ser rude com os vizinhos e exibir carros de luxo em casamentos e funerais. Quebrar estas regras pode levar à perda de pontos.

Nas pequenas vilas no entorno de Rongcheng, o crédito social é ainda mais ativo. Uma centena de vilas já possui praças do crédito social, onde brilhantes outdoors mostram detalhes e fotos dos cidadãos que ganharam ou perderam pontos durante o mês anterior.

Em julho de 2018, todo mundo na vila de Dongdao Lu Jia ganhou um livreto de avaliações com doze páginas; podar a árvore de um vizinho concede três pontos, assim como levar um idoso ao hospital ou mercado (limitado a duas viagens por mês). Tirar um carro de uma vala equivale a um ponto, ajudar a ler o medidor de águas ou emprestar uma ferramenta, meio ponto. Deixar as galinhas fora da gaiola significa uma multa de 200 yuan (U$29) e desconto de dez pontos; entrar em uma briga, multa de 1.000 yuans (U$147) e dez pontos; jogar lixo no rio, 500 yuan ($73) e cinco pontos; grafitar ou colar lambes hostis ao governo, 1000 yuans e cinquenta pontos. As penalidades são ainda mais duras para pessoas peticionando os escalões superiores do governo sem passar pelo chefe da aldeia: uma multa de 1.000 yuans e uma designação automática para a categoria B.

Liu Jian Yi, 64, um antigo fazendeiro, disse “Antes a vila pagava funcionários de limpeza, mas eles não trabalhavam bem. Agora nós mesmos fazemos a limpeza. Nos dá pontos e economiza dinheiro.” Ele costumava viajar o país trabalhando em construções antes de retornar à sua vila e a casa de pedras onde nasceu. “Eu acabei de consertar a chaminé de um vizinho. Se eu reportar isso a nosso líder do partido e se meu amigo confirmar com uma fotografia, eu devo ganhar mais um ponto. Nós conseguimos nossa pontuação ao fim de cada mês numa página da WeChat, mas eu não tenho um celular.” Ele acrescentou que pessoas com boas avaliações ganhariam cestas de ostras e latas de óleo para o ano novo chinês, mas “um vizinho me disse que o líder da vila montou uma equipe de idosos para construir uma oficina para pessoas com deficiência na cidade. Nenhum deles tinha qualificação mas ainda assim foram selecionados, graças a alguns subornos. E ele deveria nos conceder pontos? Faz você pensar.”

“Uma cartilha do que podemos e não podemos fazer”

A vizinhança de Ximu Jia, com uma população de 250 pessoas, fica nas margens de um rio. Cultiva-se ginseng sob uma sombra espessa. A primeira casa tem uma grande cruz vermelha em seu telhado de concreto e é a igreja protestante, aberta duas vezes por semana para uma congregação de cerca de 20 pessoas. A senhora Mu apareceu no degrau da porta, onde há uma placa esmaltada dizendo, “Família com crédito social exemplar.” Ela disse que os vizinhos todos têm uma igual: “Ela remonta a três anos, quando oficiais premiaram a zona leste da vila sem qualquer motivo, e depois fizeram o mesmo no lado oeste no ano seguinte. Eles tinham uma cota a cumprir. Esse ano é um pouco mais sério. Todos recebemos uma cartilha nos informando o que podemos e o que não podemos fazer. É como voltar à escola. E ela tem detalhes dos assessores para que possamos reportar nossos feitos e demandar os pontos.”

Seu nome não estava na lista mensal colocada no pátio da prefeitura, onde os locais passam muito de seu dia jogando xiangqi (xadrez chinês). “Eu não estou pronta para chamar os assessores apenas porque ajudei um vizinho,” ela disse, e adicionou, baixando sua voz, “O marido de uma amiga minha não pagou de volta um empréstimo. Ele perdeu apenas uma parcela mensal mas isso o colocou numa lista suja. Todos os vizinhos sabiam. Talvez não tenha nada a ver com isso, mas o casal se divorciou.”

Ela se referia à lista de ofensas econômicas atualizada mensalmente no site oficial CreditChina.gov.cn. Ninguém sabe o número total de empresas e indivíduos nela, pois apenas aqueles recentemente adicionados são exibidos. Em setembro de 2018, 228 mil pessoas e 55 mil companhias estavam listadas por empréstimos, impostos ou multas não pagas.
Tirando seu nome da lista suja

No microblog Weibo, os ofensores descrevem suas penalidades e a humilhação pública. Companhias estão banidas de concorrer a editais, enquanto indivíduos são impedidos de reservar quartos em hotéis, registrar seus filhos em boas escolas a tarde, comprar passagem para os trens de alta velocidade ou viajar de avião por um ano. Pagar o devido e tirar seu nome da lista se torna uma urgente prioridade.

Um pouco mais ao sul, em uma grande pedra por uma estrada deserta de quatro pistas, o nome de uma vila próxima, que é a vanguarda do crédito social, está pintado em vermelho. Yu Jianxia lidera a federação local de mulheres, mas, com o fim da política do filho único, ela não é mais a responsável por registrar nascimentos. Desde maio de 2018, ela analisou relatórios de seus três assessores, moradores considerados confiáveis para quem são reportados as boas e más ações: “Eu coleto toda informação no dia 18 de cada mês e envio meu relatório para a vila e suas líderanças no dia 20. Então nos encontramos no dia 25 para discutir as questões e dar os pontos. Para confirmar uma boa ação, precisamos de pelo menos duas fotos ou um vídeo. Os assessores cuidam disso porque nem 50 habitantes aqui têm celular.” Ela alega nunca ter removido nenhum ponto: “Se alguém deixa lixo em frente de casa, eu lhe dou três dias para limpar antes de descontar um ponto. O objetivo não é causar problemas para as pessoas, só torná-las um pouco mais civilizadas. Nosso slogan aqui é Boas pessoas, boas ações.

Mais à frente, no fim de uma barreira de plantas, na vila de Mao Liu Jia, pessoas chegaram de Rongcheng para visitar Ma Yu Ling e ganhar alguns pontos. Ela passou 16 anos vivendo em seu kang, uma plataforma aquecida, com um cantil de água e um controle remoto próximo de seu queixo. Ela sofre de uma doença de nervos que não foi bem tratada e gradualmente a tornou quadriplégica. Ela disse: “Em 1998, a TV de Shandong veio me ver e me deu uma cadeira de rodas. Eu ainda conseguia andar na época. Agora eu não consigo sequer mover meu pescoço, que dói muito.”

Duas vezes por mês por dois anos, algumas pessoas (nunca as mesmas) vêm de Rongcheng para limpar sua casa e cuidar de sua família. Isso lhes concede quatro pontos. Às vezes, trazem bandejas de bolinhos chineses, que o marido de Ma congela. “Mas,” ele disse, “isso não cobre o benefício de três mil yuan (U$440) anuais que recebíamos mas que parou quando nosso filho atingiu idade para trabalhar. E a cobertura previdenciária dela não inclui os vastos gastos em fraldas para incontinência, bandagens e desinfetantes de que precisa. Eles custam seis mil yuan por ano (U$881).” Sua esposa disse: “Nós nunca saímos da vila exceto para ir ao hospital de van, para substituir o cateter urinário. Ter alguns visitantes, me arrumar, conversar com algumas mulheres da cidade, é realmente gostoso. Eu não ligo se estão fazendo isso apenas pelas avaliações.
Pontos ruins exibidos publicamente

Nessa parte de Shandong, parece haver tantas formas de crédito social quanto vilas. Em Teng Jia, os nomes daqueles que tiveram más pontuações são transmitidos por um alto-falante toda sexta feira, o que encoraja os habitantes a escapar para as vilas vizinhas, para tomar uns drinques ou resolver uma disputa, e evitar ser vigiado e avaliado.

Jeremy Daum, pesquisador sênior da Escola de Direito de Yale, é especialista em legislação chinesa e foi fundador contribuinte do projeto China Law Translate (N.T.: iniciativa de tradução da legislação para facilitar o acesso e análise pública e científica), que inclui blogs e traduções dos sumários da regulamentação de crédito social. Não é um trabalho fácil: “Se você vai a um novo restaurante, você pode se interessar em saber as violações sanitárias que ocorreram ali – ou apenas ver uma classificação pendurada na parede. Você provavelmente está menos interessado em saber que o proprietário ou o chef recentemente forjaram uma passagem de trem. É improvável que os bancos estejam preocupados com seu fracasso em separar o lixo reciclável, quando consideram conceder um empréstimo…Pode ser que algum dia suas análises de grandes bancos de dados demonstrem que uma fraude na passagem do trem prevê de forma confiável violações de saúde, ou que quem não recicla sempre faz pagamentos atrasados, mas até que isso ocorra, avaliações unificadas não são eficazes, exceto como acrobacias publicitárias.” Ele acrescenta: “Eu acho que a estrutura do sistema é a regulamentação administrativa de negócios por meio de uma série de listas sujas. O sistema chinês definitivamente espera apoiar-se em humilhação — o que é uma questão menor no sistema dos EUA.”

Listas específicas de bons e maus elementos entre companhias e suas gerências já existem em uma variedade de setores, incluindo importação e exportação, construção, transporte terrestre e aéreo, estatística, direito, organização de eventos, publicidade, seguros de saúde, proteção de dados pessoais, propriedade intelectual e planejamento de casamentos. Mas para os cidadãos comuns, a falta de clareza destes sistemas, que é bem parecido as das empress gigantes de tecnologia dos EUA, pode transformar o crédito social em um pesadelo.

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