quinta-feira, 22 de novembro de 2018

"Estamos numa nova Guerra Fria e a culpa é de Putin mas dos americanos também"

O líder da Perestroika disse dele próprio: "Gorbatchov é muito difícil de compreender". William Taubman teve direito a várias entrevistas, falou com os mais próximos conselheiros e com aqueles que romperam com o antigo líder soviético. Mais de dez anos de trabalho resultaram numa biografia ímpar. O autor da biografia de Gorbatchov, em entrevista à TSF.



Foto: Gonçalo Villaverde / Global Imagens
Ricardo Alexandre 

Mikhail Gorbatchov disse dele próprio: "Gorbatchov é muito difícil de compreender". Essa dificuldade em compreendê-lo deriva da complexidade da sua personalidade ou do sistema em que viveu e cujo colapso acabou por provocar?

"A primeira questão que me coloquei e a que tento responder no livro é: como é que Gorbatchov se tornou Gorbatchov? Como é que um rapaz pobre de uma aldeia de camponeses que ganhou um prémio escolar por uma redação a elogiar Estaline se tornou no homem que foi o Coveiro do sistema soviético? É uma questão, em particular, sobre ele. Como é que se tornou na pessoa que foi. Mas também é uma questão de como é que o regime o escolheu para ser o seu líder? Para no fim ter sido ele a contribuir para a destruição desse mesmo regime.
E outra questão é: porque é que ele decidiu democratizar a Rússia, que nunca tinha conhecido a democracia, e porque é que, tendo feito isso, falhou? E há outras questões, como por exemplo: como é que aconteceu que Gorbatchov, o líder do comunismo, e Reagan, o presidente super-conservador dos Estados Unidos, se tornaram parceiros quase perfeitos e terminaram com a Guerra Fria? E porque é que Gorbatchov tolerou ou até acolheu bem o desaparecimento do império soviético sem disparar um tiro? Há inúmeras questões, mas tudo acaba nessa frase que ele me disse: "O Gorbatchov é difícil de compreender."

O seu livro baseia-se bastante em entrevistas com Gorbatchov mas também em conversas com alguns dos mais próximos assessores dele como Anatoli Chernyaev. Alguns, senão a maioria deles, tornaram-se críticos ferozes do homem para quem trabalhavam. Isso aconteceu porque ele não foi compreendido ou, objetivamente, foi traído?

"Bem, no fim de contas, dependeu um pouco da forma como as pessoas, no fim de contas, reagiram à atuação dele, tendo começado por admirá-lo. Depende de quem eram e quais as preferências que tinham. Pessoas como Chernyaev, que era um homem profundamente ocidentalizado, que queria que a União Soviética fosse como o Ocidente, que fossem aliados num novo mundo... mesmo ele, a determinada altura, ficou impaciente e entendia que Gorbatchov cometeu erros, mas basicamente esteve com ele. Outras pessoas esperavam que Gorbatchov fosse mais moderado nas reformas e ficaram desiludidas por entenderem que Gorbatchov foi demasiado longe e demasiado rápido, ou esperavam que ele fosse mais realista sobre o mundo quando ele era mais idealista. Penso particularmente num nome, Dabrynia, que foi durante muito tempo apoiante de Gorbatchov e que achava que Gorbatchov estava a ceder demasiado ao Ocidente, que estava demasiado ansioso por ter a aprovação do Ocidente, que estava demasiado agradecido com o respeito do Ocidente, e que, portanto, estava a desistir demasiado. Havia gente que trabalhava com Gorbatchov e que entendia que ele devia resistir à reunificação alemã, ou reivindicar mais quando aceitou que uma Alemanha reunificada pudesse ficar na NATO. Ou seja, havia pessoas que se desiludiram com ele e até pessoas que tinham reservas, mas que entendiam que Gorbatchov estava do lado dos anjos."



William Taubman, biógrafo de Gorbachev, com o livro Gorbachev: His Life and Times (Gonçalo Villaverde / Global Imagens)Foto: Gonçalo Villaverde / Global Imagens

Mas ele não estava ciente de que mais tarde poderia ser derrubado por aqueles que, como Ieltsin, queriam reformas mais rápidas?

"Ele tinha muito mais medo de ser derrubado pelos conservadores da linha dura, que achavam que ele tinha ido longe demais e depressa demais. Penso que ele tinha sempre em mente o que aconteceu a Krutchov, que foi demitido em 1964 pela linha dura. Isso explica muito o que Gorbatchov fez. Então ele acabou por ficar entre os dois campos, perdendo a confiança de ambos os lados. Ele tinha aliados, como Chernyaev, que desde muito cedo lhe diziam: desista dos tipos da linha dura, abandone o Partido Comunista. Se o fizer, os seus apoiantes vão consigo e a linha dura vai ficar sozinha. Ficaremos com dois partidos comunistas: o seu (reformista) e o velho partido comunista. Criaremos desta forma um sistema de dois partidos. Mas ele continuou sempre a dizer não é não; nunca aceitou virar as costas ao Partido Comunista, até que em setembro de 1991 eles se viraram contra ele para o derrubar."

Ele também falhou ao não prever o crescimento do nacionalismo no espaço soviético?

"Sim, absolutamente. Como se fosse uma cegueira por deslumbramento em relação à intensidade do sentimento separatista. É particularmente surpreendente porque ele viveu numa área onde havia várias nacionalidades, e algumas delas eram bastante ferozes, como os chechenos no sul. Mas ele era um crente de que, de alguma forma, a experiência soviética tinha unido estes povos e que estariam ali para demonstrar lealdade à União Soviética multinacional. Era a última coisa em que ele pensava, que também isto iria ser uma terrível ameaça à existência da URSS."

Depois do Muro de Berlim ter caído, Gorbatchov não convocou sequer uma sessão do Politburo mas mandou mensagens ao Presidente americano George Bush, a Margaret Thatcher e François Miterrand, a dizer que os dirigentes comunistas da RDA tinham tomado a decisão no sentido certo, embora saibamos hoje que também eles foram apanhados pelos eventos. Mas Gorbatchov pareceu bastante relaxado em relação ao desmantelar do sistema comunista da Europa de Leste...

"Sim. Andrei Gratchov, que foi o seu último assessor de imprensa, disse ou escreveu que Gorbatchov tinha o sonho secreto de acordar um dia e o Muro de Berlim ter caído com o seu próprio peso. E foi exatamente isso que aconteceu. Caiu quando ele estava a dormir e, quando ele acordou, já estava em pedaços. Ele estava preocupado em como as várias forças iriam reagir a isto, com as forças da Alemanha de Leste a pressionar bastante no sentido da independência, preocupado por poder haver conflito, mas, no fundo, basicamente ficou satisfeito. Porque o seu sonho era ver uma espécie de unificação da Europa, transcendendo as diferenças entre Leste e Ocidente."

Do Atlântico aos Urais...

"Do Atlântico aos Urais. Ele não só tolerava o fim do império soviético, mas quase o desejava, porque tinha esta visão abrangente da Europa - como George Bush pai disse - completa e livre."

Mais do que uma revolução, ele queria a evolução do sistema soviético... dar um rosto humano ao comunismo...

"Como ele próprio diz, foi um revolucionário por meios evolutivos. Queria ver o fim da Guerra Fria e do comunismo na União Soviética, e queria uma nova ordem mundial, baseada o mais possível no uso mínimo da força, porque ele odiava o uso da força e da violência."

Ao mesmo tempo, como também menciona no livro - uma das suas fontes diz isso - ele foi um caso praticamente único na história da Rússia, de alguém que está disposto a abdicar de poder em nome de princípios e de valores morais.

"Sim e isso é verdadeiramente extraordinário. Ele tinha o poder. A única coisa que tinha de fazer para o manter era presidir ao status quo. Em vez disso, embarcou numa mudança revolucionária em que arriscou o poder e que, por fim, lhe custou o poder. E fê-lo para ser fiel à sua visão moral. Isto é bastante extraordinário e, diria até, heróico. E fê-lo. É a sua singularidade que faz a sua biografia tão importante. Se ele tivesse feito o que outras pessoas fariam no seu lugar, então poderíamos dizer que era por causa dos valores que todos partilhavam. Ou porque enfrentavam uma situavam em que havia reivindicações que eram reconhecidas por todos. Mas ele faz o que outros não fariam e faz praticamente sozinho. Tens de te perguntar se isso reflete a sua história pessoal. E por isso é que a sua biografia é tão importante. Porque conta a história da sua vida, mas também porque a história da sua vida reflete o caráter único e crucial das ações que empreendeu enquanto político maduro."

Ainda que ele seja uma personalidade complexa e difícil de compreender, mesmo para quem falou com ele várias vezes e o estudou durante mais de dez anos...o que é que Mikhail Gorbatchov disse sobre o seu livro?

"Eu mandei-lhe uma cópia da versão inglesa e ele não lê em inglês. Na volta soube por gente que lhe é próxima que ele disse... - sabe algum russo? - "agradeço do fundo do coração", foi o que terá dito. Agora pode ler a versão em russo, já existe e nós vamos lá em dezembro e ele vai lá estar."

Pensa que pessoas como Trump e Putin estão a colocar em causa aquilo que gente como Gorbatchov e Bush pai ou Reagan conseguiram?

"Sim, agora temos uma nova guerra fria. Não é a mesma coisa, nalgumas coisas é menos perigosa que a velha Guerra Fria e noutras é mais perigosa, mas certamente Gorbatchov pensou que tinha acabado com a Guerra Fria e agora estamos confrontados com isso de novo. E eu diria que a culpa é de ambos os lados. Não só do Putin, mas dos americanos também. É um resultado trágico."

Como é que ele será recordado pelos cidadãos russos, especialmente pelas gerações mais novas?

"Penso que se a Rússia eventualmente retomar um caminho no sentido da democracia, ele será visto como o homem que abriu a porta. Se isso não acontecer, o que também é possível, ele continuará a ser visto como um sonhador utópico que pensou que poderia melhorar as coisas e ainda as tornou piores."


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