Krzysztof Charamsa era padre e é gay. No dia em que decidiu contar ao mundo a sua orientação sexual passou a ser 'persona non grata' para o Vaticano. Hoje, numa entrevista exclusiva ao Notícias ao Minuto, conta-nos como a sua vida mudou e o que é preciso alterar na Igreja para que a “maior instituição a nível mundial” deixe de ser “hipócrita” e “retrógrada”.
© Notícias ao Minuto
Em Lisboa para promover o lançamento do seu primeiro livro, ‘A Primeira Pedra – Eu, padre gay, e a minha revolta contra a hipocrisia da Igreja’, Krzysztof Charamsa conversou com o Notícias ao Minuto num hotel no Bairro Alto, curiosamente um dos locais lisboetas mais em voga entre a comunidade homossexual.
Este é o primeiro livro, mas não será o último, como confirmou. A vida mudou radicalmente, mas a felicidade é constante. Gosta de Lisboa, onde se sente em casa, e também gosta do Porto, mas foi Fátima que visitou na primeira vez que veio a Portugal. No entanto, para o ano, certamente não estará na cidade mais religiosa de Portugal, a mesma que vai receber o Papa Francisco.
Depois de assumir publicamente a sua homossexualidade algum padre falou consigo?
Os amigos verdadeiros falavam, mas às escondidas, porque publicamente ninguém se podia aproximar de mim. Esta é a condenação da Igreja, é a condenação a ser ninguém, a não existir, a estar isolado. E não se trata apenas de ser um padre gay ou não. Quem é rejeitado pela Igreja não pode estar próximo de outros padres. O castigo é o isolamento que serve de lição para os outros padres verem o que lhes acontecerá se ousarem ir contra as regras. Isto não acontece em todas as partes da Igreja, mas no geral é assim. Mas o que eu quero, o que eu exijo, é que a Igreja reflita sobre este caso que não é só meu…
Não é só seu, mas foi o único a levantar a voz pelo menos de forma tão pública…
Entendi que tinha o dever moral de o fazer. Trabalhei 12 anos para a Congregação da Doutrina da Fé, para a Inquisição, que é o coração da homofobia e da propaganda anti-gay da Igreja. Era meu dever moral, enquanto inquisidor, sair do armário e dizer que sou gay e que agi contra mim porque a Igreja não promove uma reflexão séria e intelectual sobre a homossexualidade. Há milhões de homossexuais em todo o mundo que a Igreja faz sofrer com a sua posição irracional e paranóica de repetir sempre a mesma coisa sem se confrontar com a realidade e com o avanço da ciência.
Querem condenar-me, condenem-me. Eu saí do armário para dizer 'basta, não posso mais'
E porquê sair do armário com uma conferência de imprensa e com o seu namorado ao seu lado?
Saí do armário publicamente porque a minha posição dentro da Igreja exigia uma publicidade deste tipo e porque o ato de sair do armário às escondidas não é são psicologicamente, porque a pessoa continua a fugir de si mesma. Ou seja, liberta-se, mas continua com um sentimento de culpa, de medo e de vergonha. Um gay deve libertar-se com ruído porque o silêncio ao qual foi reduzido é imoral e este silêncio deve ser destruído porque destruiu a sua personalidade. Uma feminista católica uma vez disse-me: ‘quando estás na Igreja deves fazer ouvir a tua voz e não estar em silêncio, porque isso não é bom, nem para ti, nem para a Igreja. Mas se vês que a Igreja te rejeita então sai e sai com muito ruído’.
Um gay deve libertar-se com ruído porque o silêncio ao qual foi reduzido é imoralSaí do armário publicamente e com o meu namorado ao meu lado porque foi assim a história da maturação da minha orientação sexual. Ele foi um verdadeiro dom de Deus, foi a única pessoa com que me abri e arrisquei ser eu mesmo: livre, maduro e transparente. Não o podia esconder. Foi Deus que o colocou na minha vida. E apesar de, inicialmente, a nossa relação ter sido à distância era o suficiente para eu dizer que amo este homem e que quero passar o resto da minha vida com ele.
Por que razão a sexualidade é um tabu tão grande para a Igreja?
Por efeito da ignorância da própria Igreja. Eu estava numa congregação onde ninguém, jamais, leu um livro sobre a sexualidade e, no entanto, quem lá está é especialista no sexo dos outros. Quando há um teólogo que estuda a sexualidade de acordo com a ciência de hoje começamos a persegui-lo, porque a ciência contradiz as nossas doutrinas. Na Igreja não se trata seriamente as ciências humanas sobre a sexualidade, diz-se apenas que são ideologias de um lobby gay e de um conjunto de feministas que são diabólicas.
Por exemplo, sobre o sexo entre jovens antes do casamento a Igreja diz que é um egoísmo, uma busca de prazer, mas na verdade é um sentimento puro em que os jovens procuram intimidade num momento de amor, não procuram só ser máquinas do sexo como a Igreja faz parecer. Há vários teólogos que dizem que a Igreja está errada porque incute este sentimento de culpa nas pessoas.
Acredita que o fim do celibato obrigatório poderia colocar um ponto final nos casos de pedofilia cometidos na Igreja?
O fim do celibato obrigatório chegará, porque da forma como é imposto no clero latino não tem sentido e provoca mais mal do que bem às pessoas. A mim parece-me que há uma ligação entre celibato e pedofilia, entre o complexo de sexualidade vivido em celibato e o refúgio no ato de dominar alguém inferior – um menino, um adolescente – sobre o qual se tem autoridade. Mas atenção, isto é a minha intuição, não é algo que esteja estudado.
Neste momento estamos num momento de reflexão sobre o que é a pedofilia, com intelectuais a defenderem que é um defeito natural e outros a defenderem que é algo que a pessoa desenvolve.
Francisco muda a atitude das pessoas e começa a mudar mentalidades, mas não é suficienteAcredito que o celibato dos padres lhes provoca muitos problemas com a sexualidade.
A verdade é que o celibato é uma disciplina humana que é secundária, o que é importante para a nossa fé é sermos nós próprios. Eu vivi 40 anos sem nenhuma relação sexual e poderia continuar.
Acredita que o Papa Francisco poderá mudar a Igreja?
Francisco muda a atitude das pessoas e começa a mudar mentalidades, mas não é suficiente. Deve começar, isso sim, a mudar a formação da Igreja, as pessoas que estão lá dentro. Atualmente, a relação entre o clero e os fiéis não é de irmãos. Os padres devem ser o primeiro exemplo de humildade e não de domínio e esta é a mensagem que Francisco começa a passar e, por isso, começa a causar muito incómodo no clero. Aliás, na Polónia, o clero odeia-o, estão todos à espera que morra.
E estas palavras são suficientes?
Não, porque ele não é um padre. Ele tem responsabilidade na doutrina da Igreja. Ele disse que tinha de se ocupar dos divorciados recasados. Houve dois anos de debate, dois sínodos da família e depois ratificou o que os bispos defenderam. Podia ter feito uma revolução e não fez. Ele renunciou muito à esperança e à coragem que transpareceu. E também já não vai fazer nada porque os sínodos terminaram e ele ratificou um documento onde se diz que a situação destes fiéis não é muito clara. Isto é um escândalo porque não há nenhum impedimento doutrinal que não permita resolver a questão.
Na Polónia, o clero odeia-o, estão todos à espera que o Papa morraO que deve fazer então de concreto?
Deve começar estudos sobre algumas questões doutrinais e disciplinares da Igreja que necessitam de reforma urgente, como é o caso do celibato obrigatório (se alguém quiser ser celibatário que seja, mas não deve ser obrigatório), da sexualidade, do respeito pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres dentro e fora da Igreja – a questão da ordenação das mulheres – pelos direitos das minorias.
A Igreja precisa de uma reforma que comece a introduzir o Concílio Vaticano II que não foi introduzido. Francisco devia começar por mudar de colaboradores se os que tem vão contra as suas ideias, mas ele não o fez, submeteu-se.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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