Foto: AP/Canadian Army, Lt. Ivor Castle
Foto de arquivo
Nesta semana, o mundo está recordando os 100 anos do início da Primeira Guerra Mundial, guerra esta que até à eclosão da Segunda Guerra Mundial foi chamada de Grande Guerra ou Guerra das Guerras. O professor de História da Universidade de São Paulo (USP) Angelo Segrillo comentou as razões que provocaram a deflagração deste conflito mundial.
– Há várias teorias que se debatem praticamente desde a Primeira Guerra Mundial. Simplificando um pouco, podemos dizer que há dois grandes ramos dessas teorias. Umas explicam mais pelo lado econômico, e tem uma teoria muito forte neste ramo que é a teoria do imperialismo, ligada a pessoas como Lenin, como Hobson, que dizem que na verdade as grandes potências capitalistas na época da revolução industrial se desenvolveram tanto e com tanta necessidade de matéria-prima e de mercados para exportar os produtos; mas também o capital havia crescido muito dentro deles e como não havia mercado interno para receber este capital, eles decidiram expandir para fora. Aí, entraram em conflito umas potências com as outras. Estava surgindo uma nova potência, a Alemanha que também queria uma nova divisão do mundo, das colônias, formais ou informais. Existem também outros autores que negam isso e dizem que na verdade a Primeira Guerra Mundial surgiu por outros fatores mais psicológicos: questões de honra, a questão do nacionalismo dizem que teve um papel fundamental. O nacionalismo é uma forma de paixão psicológica, um apego das pessoas àqueles novos Estados-nações que estavam sendo criados. E dessas paixões e nacionalismos surgiram rivalidades como a entre a França e a Alemanha desde a guerra franco-prussa de 1871 em que a França tinha perdido a Alsácia e a Lorena para a Alemanha. Segundo esses autores, não é tanto a questão econômica, mas uma questão destas paixões, questão de prestígio, questão de rivalidades e principalmente do nacionalismo que cresceu muito no século XIX.
– Há autores que dizem que a primeira grande guerra do século XX teve suas origens no final do século XIX ou até mesmo no início do século XIX, quando os grandes impérios começaram a se fortalecer militarmente e tecnologicamente. O senhor concorda com essa teoria?
– Parcialmente sim. Eu acho que ela não explica todo o fenômeno bastante complexo e que engloba vários desses fatores. Eu acho que um dos principais foram os fatores econômicos, eu sou um pouco mais para esse tipo de teoria. Mas fatores psicológicos e também culturais e a forma com que estão desenvolvendo os Estados principalmente nessa época da nova revolução industrial, todos esses fatores têm que ser levados em conta para poder explicar esse choque que foi a Primeira Guerra Mundial. Foi uma grande contradição. O século XIX foi o século da revolução industrial. Parece que o homem racionalmente conseguiria dominar o mundo. Agora, ele poderia utilizar as máquinas inclusive para viver melhor. Ele não tem mais que trabalhar sozinho com a mão. Agora, máquinas poderiam fazer o trabalho para ele. A cultura parecia estar desenvolvendo. No final do século XIX, parecia que nós íamos entrar no novo mundo no século XX, um mundo mais rico economicamente, mais rico culturalmente. Tanto que a primeira década foi chamada Belle Époque (Bela Época, em francês) por causa de todos esses fenômenos. E de repente vem esse choque que ninguém esperava nem sabia de onde veio e que de repente mostra o século XX entrando como um século da selvageria. Uma grande ironia: quando o homem parecia mais racional, mais dominando o mundo, mais culturalmente elevado, nós vemos a selvageria da sua forma mais irracional. A Primeira Guerra Mundial foi muito marcada pela chamada guerra de trincheiras na Europa. O que é que era a guerra de trincheiras? Era cada um à sua trincheira, frente ao outro, ninguém avançava nem um centímetro, ficavam meses e meses, um levantando a cabeça, tirando ao outro, morria gente sem avançar nem um centímetro nem para lá nem para cá.
– Morriam por causa de armamentos pesados e de condições insalubres nestas trincheiras.
– Exatamente. Parecia a coisa mais irracional do mundo. E isso era tudo o que nos esperava. Se esperava que o século XX fosse um século de uma grande ênfase cultural, de máquinas contribuindo para melhorar a condição do homem. E aí, tivemos esse choque de irracionalidade imensa. E logo depois da Primeira Guerra Mundial, outra grande ironia. Diziam que aquela seria uma guerra para acabar com todas as guerras, porque depois daquela loucura, a humanidade aprenderia e nunca mais cometeria os mesmos erros. E menos de vinte anos depois, estamos na Segunda Guerra Mundial, que foi muito pior do que a primeira. Eu acho que a humanidade tem que refletir muito sobre essa experiência do século XX para não repetir estes erros no século XXI.
– A Primeira Guerra Mundial foi marcada pelo avanço da tecnologia militar e pelo uso de armas de destruição em massa, como armas químicas, armas químicas essas que, apesar de todos os clamores mundiais, continuam em uso e continuam estocadas por um número considerável de países.
– Exatamente. A irracionalidade da coisa: temos umas armas que todo o mundo sabe que devem ser proibidas e não devem ser utilizadas. E temos os próprios Estados Unidos que continuam mantendo seus estoques desse tipo de armas. A irracionalidade ainda continua presente nesse mundo nosso que parece a cada vez mais irracional.
– Professor, nós podemos considerar a Primeira Guerra Mundial como uma guerra entre impérios? Já que de um lado, ela envolveu o Império Alemão e o Império Austro-Húngaro e também a Itália que depois passou para o outro lado que envolve o Reino Unido, a França e o Império Russo.
– Ela pode ser considerada, sim, uma guerra entre impérios. Mas, ao mesmo tempo, é a guerra do final dos impérios. Ela foi exatamente o auge desse processo e auge, quase por definição, é início do declínio. É difícil continuar no auge eternamente. Como resultado da guerra muitos daqueles impérios foram desmembrados. Do lado dos perdedores, o Império Austro-Húngaro foi desmembrado, outros países surgiram, outros Estados-nações. O Império Otomano também foi desmembrado. Do lado dos vencedores, na Rússia teve a Revolução Russa, e aí foi criada a União Soviética posteriormente. Foi o fim do império tsarista.
– A Rússia foi o único país a viver duas guerras simultaneamente: em 1917, a interna, e em 1914–1918, a mundial. Aliás, a eclosão da revolução comunista levou a Rússia e, posteriormente, a União Soviética, a se retirar do conflito.
– Exatamente. A Rússia sofreu duplamente, porque além dos quatro anos da guerra mundial, ela teve, de 1917 a 1921, a chamada Guerra Civil entre os vermelhos e os brancos. Ela viveu sete anos, e não apenas quatro anos, de guerra constante, uma guerra externa e depois uma guerra interna.
– E ela vinha de um conflito com o Japão de 1905 e uma tentativa fracassada de revolução interna.
– Foi, assim como na Segunda Guerra Mundial, um dos países e um dos povos que mais sofreram com o conflito.
– Historiadores consideram o assassinato do arquiduque Francisco Fernando em 28 de junho de 1914 como o fato gerador do conflito mundial. O príncipe foi assassinado pelo militante nacionalista Gavrilo Princip em Sarajevo, na Bósnia. E um mês depois, em 28 de julho, o conflito teve início com a invasão austro-húngara da Sérvia, seguida pela invasão alemã da Bélgica, do Luxemburgo e da França. O que em um assassinato levou ao envolvimento de todo este grupo de nações?
– Isso era o que a gente chama a última gota. Não foi o assassinato em si que levou à Primeira Guerra Mundial, ele foi a última gota de um balde que vinha se criando em cima daquilo que a gente falou no início, de questões econômicas, de rivalidades imperialistas, de rivalidades nacionalistas internas e externas. A última gota disso foi o assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro por um sérvio. Isso é interessante para falar ao público brasileiro, porque as pessoas ficam confusas: um sérvio bósnio. Às vezes, os livros de história dizem que foi um bósnio que matou ou foi um sérvio, ou um sérvio bósnio. É importante explicar ao público brasileiro que nos países eslavos – e também no império germânico – a nacionalidade de uma pessoa é determinada não pelo local onde ela nasce, a chamada jus solis, como no Brasil, é a jus sanguinis, o direito do sangue. A nacionalidade de uma pessoa é a nacionalidade do seu pai ou da sua mãe. Então, apesar de ter nascido na Bósnia, ele era sérvio de nacionalidade. Ele era um sérvio que lutava não só pela independência da Sérvia, como dos outros povos que tradicionalmente eram ligados à Sérvia: os croatas, os próprios bósnios, toda a região dos Bálcãs. Tanto que depois da Primeira Guerra Mundial se formou o reino dos sérvios, croatas e eslovenos, a futura Iugoslávia. Era um nacionalismo do que a gente diz Estado-nação, apesar de que depois ficaram juntos. Se essa gota tivesse acontecido em outro contexto, talvez não levaria à guerra. Principalmente foi no contexto do sistema de alianças militares, e acabou tornando em um conflito.
– O senhor disse que no final da Primeira Guerra Mundial não se imaginaria que um novo conflito viesse ocorrer. A primeira guerra terminou com o balanço trágico de dois milhões de mortos, centenas de milhões de feridos e milhões de traumatizados pelo conflito, mas 21 anos depois surgiu a Segunda Guerra Mundial com proporções ainda maiores. Eu lhe pergunto diante dos acontecimentos que o mundo está vivendo atualmente, essa troca de acusações entre a Rússia e a Ucrânia e que também envolve os Estados Unidos e a União Europeia, os acontecimentos no Oriente Médio e em vários países da África: estaremos no limiar de um terceiro conflito mundial?
– Nós estamos celebrando o aniversário da Primeira Guerra Mundial porque uma das grandes lições desse conflito é que nós temos que tomar muito cuidado para que um conflito localizado não se torne um conflito generalizado e muito menos um conflito mundial, como aconteceu com a Primeira Guerra Mundial, por causa das alianças e rivalidades que havia. Por exemplo, pegamos a questão da Ucrânia, que é um conflito mais ou menos localizado entre um país menor como a Ucrânia (como era a Sérvia na época) e um país maior, uma Rússia.
– Já não existem conflitos meramente regionais, todos os conflitos se globalizam.
– E nós temos esse fato não tão inédito ou novo que é a globalização. Algumas pessoas dizem que a globalização é uma coisa das últimas décadas do século XX.
– Mas é um fato inerente à história da humanidade.
– Sim, e este processo se acelera cada vez mais. E isso aumenta também os riscos. E a gente deve tomar as lições da Primeira Guerra Mundial e evitar que conflitos e disputas localizadas se generalizem. O sistema de alianças é apontado por todos os pesquisadores como uma das causas da Primeira Guerra Mundial. E nós ainda estamos vivendo um sistema de alianças. A OTAN, que é uma aliança militar, ainda existe.
– É uma consequência da Segunda Guerra Mundial.
– E como a OTAN é uma aliança militar da época da Guerra Fria, da disputa entre duas superpotências que se diziam antagônicas, lógico que a aliança perderia o seu sentido depois de acabada a Guerra Fria. Mas o que nós vemos é o contrário: a OTAN não diminuiu, não se extinguiu, como se era de esperar, mas se ampliou. E isso é uma coisa perigosa. Nós temos que tomar cuidado com o sistema de alianças porque as lições da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais mostram que é um mecanismo perigoso.
– E aí entra em cena a ONU que deve exercer o seu papel de conciliador e pacificador para que cessem esses conflitos em qualquer parte do mundo.
– Exatamente, o ideal seria que não vivêssemos esse sistema de alianças – militares, principalmente, – parciais. E que tivéssemos uma entidade mundial de caráter democrático em que as disputas pudessem ser levadas e resolvidas na base de negociação.
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Nesta semana, o mundo está recordando os 100 anos do início da Primeira Guerra Mundial, guerra esta que até à eclosão da Segunda Guerra Mundial foi chamada de Grande Guerra ou Guerra das Guerras. O professor de História da Universidade de São Paulo (USP) Angelo Segrillo comentou as razões que provocaram a deflagração deste conflito mundial.
– Há várias teorias que se debatem praticamente desde a Primeira Guerra Mundial. Simplificando um pouco, podemos dizer que há dois grandes ramos dessas teorias. Umas explicam mais pelo lado econômico, e tem uma teoria muito forte neste ramo que é a teoria do imperialismo, ligada a pessoas como Lenin, como Hobson, que dizem que na verdade as grandes potências capitalistas na época da revolução industrial se desenvolveram tanto e com tanta necessidade de matéria-prima e de mercados para exportar os produtos; mas também o capital havia crescido muito dentro deles e como não havia mercado interno para receber este capital, eles decidiram expandir para fora. Aí, entraram em conflito umas potências com as outras. Estava surgindo uma nova potência, a Alemanha que também queria uma nova divisão do mundo, das colônias, formais ou informais. Existem também outros autores que negam isso e dizem que na verdade a Primeira Guerra Mundial surgiu por outros fatores mais psicológicos: questões de honra, a questão do nacionalismo dizem que teve um papel fundamental. O nacionalismo é uma forma de paixão psicológica, um apego das pessoas àqueles novos Estados-nações que estavam sendo criados. E dessas paixões e nacionalismos surgiram rivalidades como a entre a França e a Alemanha desde a guerra franco-prussa de 1871 em que a França tinha perdido a Alsácia e a Lorena para a Alemanha. Segundo esses autores, não é tanto a questão econômica, mas uma questão destas paixões, questão de prestígio, questão de rivalidades e principalmente do nacionalismo que cresceu muito no século XIX.
– Há autores que dizem que a primeira grande guerra do século XX teve suas origens no final do século XIX ou até mesmo no início do século XIX, quando os grandes impérios começaram a se fortalecer militarmente e tecnologicamente. O senhor concorda com essa teoria?
– Parcialmente sim. Eu acho que ela não explica todo o fenômeno bastante complexo e que engloba vários desses fatores. Eu acho que um dos principais foram os fatores econômicos, eu sou um pouco mais para esse tipo de teoria. Mas fatores psicológicos e também culturais e a forma com que estão desenvolvendo os Estados principalmente nessa época da nova revolução industrial, todos esses fatores têm que ser levados em conta para poder explicar esse choque que foi a Primeira Guerra Mundial. Foi uma grande contradição. O século XIX foi o século da revolução industrial. Parece que o homem racionalmente conseguiria dominar o mundo. Agora, ele poderia utilizar as máquinas inclusive para viver melhor. Ele não tem mais que trabalhar sozinho com a mão. Agora, máquinas poderiam fazer o trabalho para ele. A cultura parecia estar desenvolvendo. No final do século XIX, parecia que nós íamos entrar no novo mundo no século XX, um mundo mais rico economicamente, mais rico culturalmente. Tanto que a primeira década foi chamada Belle Époque (Bela Época, em francês) por causa de todos esses fenômenos. E de repente vem esse choque que ninguém esperava nem sabia de onde veio e que de repente mostra o século XX entrando como um século da selvageria. Uma grande ironia: quando o homem parecia mais racional, mais dominando o mundo, mais culturalmente elevado, nós vemos a selvageria da sua forma mais irracional. A Primeira Guerra Mundial foi muito marcada pela chamada guerra de trincheiras na Europa. O que é que era a guerra de trincheiras? Era cada um à sua trincheira, frente ao outro, ninguém avançava nem um centímetro, ficavam meses e meses, um levantando a cabeça, tirando ao outro, morria gente sem avançar nem um centímetro nem para lá nem para cá.
– Morriam por causa de armamentos pesados e de condições insalubres nestas trincheiras.
– Exatamente. Parecia a coisa mais irracional do mundo. E isso era tudo o que nos esperava. Se esperava que o século XX fosse um século de uma grande ênfase cultural, de máquinas contribuindo para melhorar a condição do homem. E aí, tivemos esse choque de irracionalidade imensa. E logo depois da Primeira Guerra Mundial, outra grande ironia. Diziam que aquela seria uma guerra para acabar com todas as guerras, porque depois daquela loucura, a humanidade aprenderia e nunca mais cometeria os mesmos erros. E menos de vinte anos depois, estamos na Segunda Guerra Mundial, que foi muito pior do que a primeira. Eu acho que a humanidade tem que refletir muito sobre essa experiência do século XX para não repetir estes erros no século XXI.
– A Primeira Guerra Mundial foi marcada pelo avanço da tecnologia militar e pelo uso de armas de destruição em massa, como armas químicas, armas químicas essas que, apesar de todos os clamores mundiais, continuam em uso e continuam estocadas por um número considerável de países.
– Exatamente. A irracionalidade da coisa: temos umas armas que todo o mundo sabe que devem ser proibidas e não devem ser utilizadas. E temos os próprios Estados Unidos que continuam mantendo seus estoques desse tipo de armas. A irracionalidade ainda continua presente nesse mundo nosso que parece a cada vez mais irracional.
– Professor, nós podemos considerar a Primeira Guerra Mundial como uma guerra entre impérios? Já que de um lado, ela envolveu o Império Alemão e o Império Austro-Húngaro e também a Itália que depois passou para o outro lado que envolve o Reino Unido, a França e o Império Russo.
– Ela pode ser considerada, sim, uma guerra entre impérios. Mas, ao mesmo tempo, é a guerra do final dos impérios. Ela foi exatamente o auge desse processo e auge, quase por definição, é início do declínio. É difícil continuar no auge eternamente. Como resultado da guerra muitos daqueles impérios foram desmembrados. Do lado dos perdedores, o Império Austro-Húngaro foi desmembrado, outros países surgiram, outros Estados-nações. O Império Otomano também foi desmembrado. Do lado dos vencedores, na Rússia teve a Revolução Russa, e aí foi criada a União Soviética posteriormente. Foi o fim do império tsarista.
– A Rússia foi o único país a viver duas guerras simultaneamente: em 1917, a interna, e em 1914–1918, a mundial. Aliás, a eclosão da revolução comunista levou a Rússia e, posteriormente, a União Soviética, a se retirar do conflito.
– Exatamente. A Rússia sofreu duplamente, porque além dos quatro anos da guerra mundial, ela teve, de 1917 a 1921, a chamada Guerra Civil entre os vermelhos e os brancos. Ela viveu sete anos, e não apenas quatro anos, de guerra constante, uma guerra externa e depois uma guerra interna.
– E ela vinha de um conflito com o Japão de 1905 e uma tentativa fracassada de revolução interna.
– Foi, assim como na Segunda Guerra Mundial, um dos países e um dos povos que mais sofreram com o conflito.
– Historiadores consideram o assassinato do arquiduque Francisco Fernando em 28 de junho de 1914 como o fato gerador do conflito mundial. O príncipe foi assassinado pelo militante nacionalista Gavrilo Princip em Sarajevo, na Bósnia. E um mês depois, em 28 de julho, o conflito teve início com a invasão austro-húngara da Sérvia, seguida pela invasão alemã da Bélgica, do Luxemburgo e da França. O que em um assassinato levou ao envolvimento de todo este grupo de nações?
– Isso era o que a gente chama a última gota. Não foi o assassinato em si que levou à Primeira Guerra Mundial, ele foi a última gota de um balde que vinha se criando em cima daquilo que a gente falou no início, de questões econômicas, de rivalidades imperialistas, de rivalidades nacionalistas internas e externas. A última gota disso foi o assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro por um sérvio. Isso é interessante para falar ao público brasileiro, porque as pessoas ficam confusas: um sérvio bósnio. Às vezes, os livros de história dizem que foi um bósnio que matou ou foi um sérvio, ou um sérvio bósnio. É importante explicar ao público brasileiro que nos países eslavos – e também no império germânico – a nacionalidade de uma pessoa é determinada não pelo local onde ela nasce, a chamada jus solis, como no Brasil, é a jus sanguinis, o direito do sangue. A nacionalidade de uma pessoa é a nacionalidade do seu pai ou da sua mãe. Então, apesar de ter nascido na Bósnia, ele era sérvio de nacionalidade. Ele era um sérvio que lutava não só pela independência da Sérvia, como dos outros povos que tradicionalmente eram ligados à Sérvia: os croatas, os próprios bósnios, toda a região dos Bálcãs. Tanto que depois da Primeira Guerra Mundial se formou o reino dos sérvios, croatas e eslovenos, a futura Iugoslávia. Era um nacionalismo do que a gente diz Estado-nação, apesar de que depois ficaram juntos. Se essa gota tivesse acontecido em outro contexto, talvez não levaria à guerra. Principalmente foi no contexto do sistema de alianças militares, e acabou tornando em um conflito.
– O senhor disse que no final da Primeira Guerra Mundial não se imaginaria que um novo conflito viesse ocorrer. A primeira guerra terminou com o balanço trágico de dois milhões de mortos, centenas de milhões de feridos e milhões de traumatizados pelo conflito, mas 21 anos depois surgiu a Segunda Guerra Mundial com proporções ainda maiores. Eu lhe pergunto diante dos acontecimentos que o mundo está vivendo atualmente, essa troca de acusações entre a Rússia e a Ucrânia e que também envolve os Estados Unidos e a União Europeia, os acontecimentos no Oriente Médio e em vários países da África: estaremos no limiar de um terceiro conflito mundial?
– Nós estamos celebrando o aniversário da Primeira Guerra Mundial porque uma das grandes lições desse conflito é que nós temos que tomar muito cuidado para que um conflito localizado não se torne um conflito generalizado e muito menos um conflito mundial, como aconteceu com a Primeira Guerra Mundial, por causa das alianças e rivalidades que havia. Por exemplo, pegamos a questão da Ucrânia, que é um conflito mais ou menos localizado entre um país menor como a Ucrânia (como era a Sérvia na época) e um país maior, uma Rússia.
– Já não existem conflitos meramente regionais, todos os conflitos se globalizam.
– E nós temos esse fato não tão inédito ou novo que é a globalização. Algumas pessoas dizem que a globalização é uma coisa das últimas décadas do século XX.
– Mas é um fato inerente à história da humanidade.
– Sim, e este processo se acelera cada vez mais. E isso aumenta também os riscos. E a gente deve tomar as lições da Primeira Guerra Mundial e evitar que conflitos e disputas localizadas se generalizem. O sistema de alianças é apontado por todos os pesquisadores como uma das causas da Primeira Guerra Mundial. E nós ainda estamos vivendo um sistema de alianças. A OTAN, que é uma aliança militar, ainda existe.
– É uma consequência da Segunda Guerra Mundial.
– E como a OTAN é uma aliança militar da época da Guerra Fria, da disputa entre duas superpotências que se diziam antagônicas, lógico que a aliança perderia o seu sentido depois de acabada a Guerra Fria. Mas o que nós vemos é o contrário: a OTAN não diminuiu, não se extinguiu, como se era de esperar, mas se ampliou. E isso é uma coisa perigosa. Nós temos que tomar cuidado com o sistema de alianças porque as lições da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais mostram que é um mecanismo perigoso.
– E aí entra em cena a ONU que deve exercer o seu papel de conciliador e pacificador para que cessem esses conflitos em qualquer parte do mundo.
– Exatamente, o ideal seria que não vivêssemos esse sistema de alianças – militares, principalmente, – parciais. E que tivéssemos uma entidade mundial de caráter democrático em que as disputas pudessem ser levadas e resolvidas na base de negociação.
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