Extras

Extras

quarta-feira, 26 de março de 2014

Os perigos do Marco Civil da Internet e da neutralidade de rede



Os perigos do Marco Civil da Internet e da neutralidade de rede (Imagem da internet)

Muitas pessoas têm alertado para os perigos ocultos no projeto de lei em tramitação no Congresso chamado de Marco Civil da Internet (Projeto de Lei nº 2.126 de 2011) — que está na iminência de ser votado pela Câmara dos Deputados —, especialmente no que diz respeito às ameaças reais de cerceamento da liberdade de expressão.

No entanto, uma questão não menos controversa e bastante perigosa para o futuro da internet é a chamada ‘neutralidade de rede’, ou internet aberta. O próprio relator do projeto, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), afirma que a neutralidade de rede é “o coração do Projeto de Lei”.

Diante disso, este texto tem por objetivo (i) apresentar de forma simplificada os fenômenos concretos decorrentes da ideia de neutralidade de rede, (ii) expor os efeitos nocivos decorrentes de sua implementação compulsória pelo Estado e (iii) tecer comentários acerca da proposta do Marco Civil da Internet.

Antes de explorar as redes de dados em si, permita-me recorrer a um exemplo que nos ajudará mais adiante. Suponha uma autoestrada puramente privada, sem qualquer tipo de regulação estatal ou barreira à entrada de novos concorrentes. São três faixas em cada sentido, ligando duas grandes cidades. O proprietário dessa estrada pode extrair lucros de diversas formas: cobrando pedágio, alugando ou vendendo terrenos marginais, permitindo placas de publicidade. Qualquer que seja a forma de obtenção de receitas, quanto mais veículos trafegarem por sua rodovia, maior será o fluxo de caixa gerado por cada uma das alternativas acima. Como se trata de uma autoestrada, a velocidade de tráfego é importante para os consumidores.

O proprietário da estrada pode adotar diferentes soluções de gestão de tráfego, tais como: qualquer veículo pode trafegar por qualquer faixa; caminhões só podem trafegar nas duas faixas à direita; cobrança diferenciada de pedágio conforme o veículo e o horário. Pode inclusive não cobrar nada de nenhum veículo, e não praticar qualquer política de gestão de tráfego.

Eventualmente, uma transportadora de grande porte, que utilizasse o trecho com frequência, poderia celebrar um contrato diferenciado com a autoestrada. Seus caminhões poderiam trafegar por qualquer faixa, a qualquer hora do dia, com pedágio livre, mediante, por exemplo, o pagamento de um determinado valor mensal. Carros de passeio poderiam ter passagem livre pelo pedágio, desde que instalassem sensores e o pagamento fosse feito por meio de fatura mensal (como já acontece em muitas concessões de estradas no Brasil).

Enfim, o fato de a estrada ser uma propriedade privada permite que os gestores tenham liberdade para gerenciá-la da melhor forma possível.

O arranjo descrito no exemplo acima não aparenta problemas. O proprietário voltado para o lucro está interessado em prover mais capacidade de tráfego, e não menos. Como os usuários financiam direta ou indiretamente o serviço oferecido, é natural que os lucros sejam reinvestidos para a conservação do pavimento e para a expansão da capacidade de tráfego, não havendo, portanto, conflito entre os consumidores e o provedor da infraestrutura. Contratos diferenciados podem ser celebrados com usuários diferenciados, algo muito corriqueiro em qualquer ramo de negócio. Mais ainda: ao contrário do que se pode imaginar, a empresa em questão nãoestá livre para cobrar preços absolutamente impeditivos e “fazer o que ela quiser”. O fato de não haver qualquer restrição à entrada de novos concorrentes (outras rodovias, trens, dutos etc.) pressiona a mesma a fornecer serviços de qualidade e a preços competitivos (se é que será cobrado algum valor pelo tráfego).

Os ensinamentos fornecidos pela Escola Austríaca acerca do processo de mercado mostram que não há melhor controle do “poder de mercado” e das “práticas anticompetitivas” do que a livre concorrência.

As redes de dados — que num passado não muito distante prestavam outros serviços, como telefonia fixa, celular e TV por assinatura — não se diferenciam em essência do exemplo descrito acima, por mais complexo que seja o aparato técnico presente nas telecomunicações. Elas são as rodovias. Os provedores de conteúdo — ou geradores de tráfego — são websites, aplicativos,data-centers, serviços de video on demand, video streaming, voz sobre IP etc. Podem ser comparados com os veículos que trafegam pelas estradas.

Por fim, temos os consumidores finais, presentes em qualquer setor da economia. Os indivíduos que trafegam pelas rodovias e que consomem os produtos que circularam por elas são análogos aos que leem notícias nos jornais eletrônicos, mandam e recebem e-mails, assistem a vídeos no celular ou em casa.

Com esse esquema em mente, podemos voltar para a questão da neutralidade de rede, ou, como preferem outros, da internet aberta. Pode-se definir uma rede neutra como aquela em que não há qualquer discriminação de tráfego com base em aspectos comerciais, técnicos ou de conteúdo. Em outras palavras, uma situação em que nenhum bit deve ter prioridade sobre outro. Em termos de engenharia este é um caso muito particular de arquitetura e gestão de rede.

Os defensores da imposição da neutralidade de rede por meio de legislação estatal argumentam que esse é o único arranjo que permite a livre circulação de informações e a efetiva liberdade de escolha por parte dos usuários finais. Ainda, sustentam que caso as empresas de infraestrutura operem sem qualquer tipo de restrição, estas usarão todo seu “poder de mercado” para escolher qual tipo de conteúdo pode trafegar, para privilegiar os produtores de conteúdo ligados aos seus grupos econômicos e para dificultar a operação de pequenos geradores de tráfego.

Num artigo recente publicado na Folha de São Paulo, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) apresenta sua defesa para a neutralidade de rede. Segundo Molon, as empresas provedoras forçariam os consumidores a ter um contrato para e-mails, outro para vídeos, outro para redes sociais e assim por diante, cobrando preços cada vez mais caros, claro.


Evidentemente que sob um regime de livre competição, de respeito à propriedade privada e de liberdade de gestão empresarial esses temores não passariam de retórica política. Quando os consumidores contratam um serviço de banda larga, eles querem ter acesso à internet como um todo, e não a aplicações específicas, escolhidas pelas empresas. Caso a prestadora com a qual está vinculado passe a praticar qualquer tipo de compartimentalização, restrição, boicote ou censura, rapidamente isso seria percebido, o que geraria ampla insatisfação entre os clientes. A própria tendência a consumir os serviços de telecomunicações em formato de “combos” mostra como o mercado tem caminhado no sentido de simplificar e agrupar os contratos com os consumidores, ou seja, na direção contrária à apontada pelo deputado no artigo.

Reiterando, a não existência de qualquer tipo de barreira governamental para a construção e gestão de novas redes é crucial para a mitigação dos comportamentos contrários aos desejos dos consumidores. Se existem indícios (os quais eu desconheço) do cenário tenebroso descrito pelo deputado, sua ocorrência se deve às restrições à concorrência e ao nada atrativo ambiente de negócios existente no Brasil.

Por outro lado, a imposição governamental da rede neutra implicaria uma série de consequências, a maioria delas não premeditada ou não esclarecida pelos proponentes. E seria assim porque as propostas de neutralidade padecem de uma espécie de “falácia do nirvana”: a ideia é definida em termos utópicos, algo como “todos os bits devem trafegar livremente por todas as redes, sem qualquer tipo de gerenciamento de tráfego”. Os desvios entre a realidade — sempre imperfeita — e o nirvana cibernético sonhado pelos partidários da internet aberta serão usados como justificativa para as devidas “correções das falhas”. Qualquer semelhança com a enganosa ideia de ‘concorrência perfeita’ não é mera coincidência.

A seguir, comento as três principais consequências nocivas decorrentes de leis que imponham a neutralidade das redes. Antes, porém, peço licença para transcrever todo o artigo do Projeto de Lei do Marco Civil da Internet que trata da neutralidade de rede.

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada por Decreto e somente poderá decorrer de:

I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e
II – priorização a serviços de emergência.

§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º, o responsável mencionado no caput deve:

I – abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 do Código Civil;
II – agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III – informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV – oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3º Na provisão de conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.

Primeiro, redes de dados são muito mais complexas que estradas. Backbones, satélites, cabos submarinos intercontinentais, roteadores, pontos de troca de tráfego, linhas dedicadas, redes de acesso,data-centers, centros de monitoramento e vários outros componentes são mantidos em funcionamento pelo estado-da-arte em termos de engenharia. Os investimentos em equipamentos cada vez mais especializados, o aumento da capacidade de tráfego, o treinamento e a contratação de mão-de-obra altamente qualificada crescem ano após ano. Nesse contexto, a própria definição do que efetivamente é uma rede “neutra” já se apresenta como um desafio ao intelecto humano. O vídeo abaixo ilustra bem a questão.

O que aconteceria é o estabelecimento de normas altamente detalhistas, que necessariamente abordariam as minúcias técnicas do negócio. Um considerável contingente de burocratas seria designado para definir os conceitos e certificar quais redes são e quais não são neutras. Leiam o § 1º e fiquem à vontade para imaginar o que poderia sair de um decreto presidencial regulamentando o tráfego da internet.

Ademais, o que vem a ser “indispensável”, “agir com proporcionalidade”, “abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais”? Prato cheio para a promulgação de mais algumas centenas de leis, decretos, regulamentos e contendas judiciais. De todo modo, dado o caráter estático de qualquer aparato legal, o progresso tecnológico ficaria numa zona cinzenta, entre a legalidade e a ilegalidade. O processo de mercado no setor mais dinâmico da economia seria fatalmente prejudicado.

Segundo, como foi dito anteriormente, uma rede neutra, na qual o tráfego não sofre nenhum tipo de controle, perfaz um caso particular de arquitetura e gestão. Como qualquer tipo de negócio, há infinitas outras formas de se gerir uma rede de dados. Uma lei que obrigue a neutralidade implicaria uma “estatização branca” das empresas provedoras de rede. Para não deixar dúvida, o Projeto de Lei chega a incluir a “finalidade social da rede” (Art. 1º, inciso VI), o que explicitamente representa um cheque em branco nas mãos do Estado. Toda e qualquer intervenção, incluindo a própria encampação das firmas, poderia ser justificada com base nesse absurdo jurídico. Nem precisamos nos aprofundar nos efeitos desastrosos que tal medida acarretaria. De pronto haveria uma retração nos investimentos no setor em decorrência da ausência de garantias acerca da propriedade privada. E em função da crescente demanda e da implacável necessidade de aumento de capacidade, em pouco tempo os consumidores notariam a degradação da qualidade dos serviços.

Vale mencionar o irresistível impulso ao riso provocado pelo Art. 3º, Inciso VIII. Somos informados que um dos princípios da internet no Brasil é a ‘liberdade de modelos de negócios’, desde que os negócios não conflitem com o estabelecido na lei, a qual, se considerada ao pé da letra, só permite um único modelo de negócio. Eis aí mais um importantíssimo ponto sobre os qual os legisladores e juízes teriam de se debruçar: definir o que é ‘liberdade de modelo de negócio’.

Terceiro, uma vez imposta a neutralidade das redes, as grandes empresas estabelecidas pressionariam para que as diferentes interpretações convergissem para o interesse particular de seus negócios. Em qualquer setor da economia, grandes companhias são capazes de suportar melhor as exigências legais, seja em termos de custos de adaptação técnica, seja em termos de contratação de lobistas e de gastos com publicidade para compensar eventuais danos à marca. O mesmo não acontece com empresas de pequeno porte, para as quais cada centavo conta e a gestão diferenciada é na maioria das vezes a razão de seu sucesso. Esse é o caráter protecionista de qualquer regulamentação imposta pelo governo: ela protege as empresas estabelecidas e as blinda de qualquer concorrência efetiva e potencial.

Por exemplo, uma nova companhia poderia decidir atender a um determinado nicho de consumidores, com perfil de uso da rede mais ou menos específico. Facilmente essa conduta seria interpretada como contrária ao “princípio” da neutralidade de rede. O Art. 9º permite qualquer tipo de interpretação acerca da diferenciação dos serviços oferecidos aos consumidores. Isso é um terreno fértil para a judicialização e a burocratização das relações de mercado, que antes aconteciam de maneira contratual e orientada pelo sistema de preços.

Em suma, a bem-intencionada proposta de “abertura” da internet na verdade provocaria a redução da concorrência, o que não tardaria a prejudicar os consumidores.

Um recente acordo entre Netflix e Comcast, a maior operadora de TV a cabo e de serviço de acesso à internet dos EUA, chamou a atenção daqueles que acompanham o assunto. No segundo semestre de 2013, os clientes da Comcast relataram certas dificuldades para começar a assistir aos vídeos da Netflix. Claramente, a Comcast estava gerindo sua rede, restringindo a banda para a Netflix. Nada mais natural para um serviço que corresponde a 31,6% de todo o tráfego da internet nos EUA no horário de pico, segundo relatório Global Internet Phenomena. O acordo no qual a Netflix remunerará a Comcast atende aos interesses das duas empresas: a empresa de filmes não quer perder seus clientes para os concorrentes, e a Comcast não quer ser reconhecida como uma rede lenta, em que os vídeos da Netflix e outros provedores de conteúdo não funcionam direito, o que também provocaria uma fuga de consumidores. Os usuários finais saem ganhando sem pagar um centavo a mais, e novos investimentos em aumento de capacidade de tráfego podem ser feitos, uma vez que foi dada a sinalização de que os geradores de alto tráfego pagarão aos detentores da rede para manter sua qualidade.

Uma lei de rede neutra, aplicada na sua totalidade, impediria tal contrato, bem como a própria alocação de banda feita pela Comcast. Os investimentos em aumento de capacidade seriam desestimulados, ou seu financiamento cairia diretamente sobre os ombros dos consumidores, por meio de preços maiores pelo acesso. O crescimento de um determinado serviço, como video streaming, seria algo ameaçador para a percepção e qualidade de toda a rede. Reiterando o que foi dito acima, seriam deflagradas intermináveis batalhas judiciais envolvendo todos os agentes desse mercado.

No Brasil, temos o caso da operadora de telefonia móvel Claro. Ela oferece gratuitamente a seus clientes acesso às redes sociais Facebook e Twitter. Desconheço os detalhes do negócio, mas é muito provável que as duas redes sociais remuneram a empresa de telefonia para compensar a gratuidade percebida pelos consumidores. Aprovada a rede neutra, a Claro não poderia continuar com tal prática, uma vez que sua rede não é “neutra” com relação a outras redes sociais. Ou a gratuidade é para todas ou que se faça a cobrança de forma igualitária. A diferenciação, um dos mais usuais mecanismos de concorrência, seria virtualmente proibida.

Em qualquer arranjo, o aparato estatal, na condição atual de supremo mediador dos conflitos, na prática assumiria o controle dos negócios, inclusive da circulação do conteúdo. Pior: impedida a livre celebração de contratos, o sistema de preços e os incentivos não trariam as informações necessárias para o bom funcionamento daquele que provavelmente é o mais complexo arranjo já produzido pela ação humana: a internet.

Concluindo, não restam dúvidas de que a ideia de rede neutra representa uma grave ameaça ao futuro da internet, seja nos aspectos tecnológicos, empresariais ou de liberdade de fluxo de informações. Sua aprovação representaria o início de uma espiral intervencionista: as primeiras interferências gerariam distúrbios no setor, o que seria usado como justificativa para mais e mais intervenções. Pouco impacto seria percebido no curto prazo, mas no médio e longo prazo seriam inevitáveis a redução dos investimentos e o aumento da insatisfação dos consumidores. Veríamos o surgimento de uma pletora de leis definindo parâmetros técnicos, de qualidade, de atendimento e de conteúdo nacional mínimo, mais ou menos como já acontece com os serviços tradicionais de telecomunicações.

O Estado se transformaria paulatinamente no ente central de todo o setor, do provedor de rede ao consumidor final, passando pelos geradores de conteúdo e fabricantes de equipamentos. Isso afetaria o sistema de preços e prejudicaria o cálculo econômico dos agentes privados, o que seria a própria pavimentação do caminho para o caos nas redes.

Hoje, se considerarmos as definições postas pelos defensores da internet aberta, as redes não são neutras. Dito de outra forma, mesmo com toda regulamentação sobre os serviços tradicionais de telecomunicações, as empresas de infraestrutura gozam de certa liberdade para gerir suas redes, celebrar contratos diferenciados, inovar. O mesmo acontece com os serviços prestados sobre as redes. Os temores de que as companhias farão controle de conteúdo, de que usarão seu “poder de mercado” contra os consumidores e de que a liberdade de expressão na internet corre perigo sob o atual arranjo não passam de discurso político.

Todas essas ameaças são afastadas com mais respeito à propriedade privada e mais liberdade empresarial, não com menos. Se os digníssimos congressistas de Brasília estiverem realmente preocupados com a liberdade, com a privacidade e com o desenvolvimento da internet no Brasil, o melhor que eles podem fazer é rechaçar por completo qualquer proposta de Marco Civil.

Daniel Marchi é economista graduado pela FEA USP Ribeirão Preto e membro do Instituto Carl Menger em Brasília


FONTE:
https://www.epochtimes.com.br/perigos-marco-civil-internet-neutralidade-rede/#.UzK17uNdXqg

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Faça seu comentário aqui ou deixe sua opinião.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.